domingo, 26 de agosto de 2012

A restauração desastrada do Ecce Homo

A notícia da restauração desastrada da pintura Ecce Homo de Elias Garcia Martinez no Santuário da Misericórdia, na Espanha tem motivos fortes para ter alcançado tão grande repercussão. Não demorou muito para que percebesse nesse acontecimento uma analogia com a falsificação da imagem do verdadeiro Cristo. Essa falsificação tem acontecido ao longo da história até os dias de hoje e tem se concretizado de inúmeras e diversas formas.

A verdadeira pintura, Ecce Homo, era realmente bonita e piedosa. Retratava a face de Cristo com traços bem definidos e harmônicos. O semblante de Jesus expressava o seu sofrimento, mas também revelava a sua bondade e mansidão. Mas a obra já se encontrava bastante deteriorada. Tudo isso que descrevi ainda podia ser contemplado apesar de o tempo ter destruído uma parcela significa da pintura.

Motivada por um zelo sincero e bem intencionado, uma senhora resolveu tomar para si a tarefa de restaurar a imagem de Cristo. E o resultado não poderia ter sido mais desastroso.

Já é possível perceber a analogia a que me refiro? Nos dias de hoje e ao longo da história, a imagem de Cristo nos é apresentada com algumas lacunas. Essas lacunas não são devidas à existência de imperfeições em Cristo, mas à existência de imperfeições nos homens que se empenharam em anunciá-Lo. De qualquer modo, apesar das imperfeições, essa imagem de Cristo é autêntica, está lá, pode ser contemplada e amada. A missão de anunciar Cristo é a missão da Igreja. Apesar das limitações dos homens, a Igreja tem sido desde sempre o lugar de encontro com o verdadeiro Cristo. A Igreja sempre anunciou o Jesus verdadeiro (Ecce Homo), ainda que hoje em dia, à semelhança do Ecce Homo anterior à malograda restauração, essa imagem do verdadeiro Cristo apresenta os sinais da deterioração do tempo. Deterioração da imagem, mas não de Cristo.

Muitas vezes nós, tantos os que nos dizemos em comunhão com a Igreja quanto os afastados dela, deliramos na fantasia de que somos capazes de restaurar a imagem de Cristo. E esse delírio consiste em restaurar a imagem de Cristo carregando-a com os nossos ideais pessoais de perfeição. E o resultado final é um desenho de Jesus segundo a nossa medida, à nossa imagem e semelhança. E o resultado não poderia ser mais desastroso. Muito mais bizarra do que o "novo" Ecce Homo.

É isso que tem feito as pessoas desenharem Cristo com os mais estranhos e estapafúrdios perfis. Alguns ainda hoje vêem Cristo como um homem desprovido de sentimentos humanos normais, como se através de sua vida tivesse ensinado uma ascese de total negação da dimensão material em favor da dimensão espiritual. Em suas diversas variantes, é essa visão que levou muitos cristãos a evitar o sorriso, supondo que Jesus nunca sorriu pelo simples fato de que os Evangelhos nunca o menciona explicitamente. Também levou alguns a evitar todo tipo de manifestação afetiva do corpo, incapazes de ver senão sensualidade imoral nelas. Outros, se recusaram a aceitar a dimensão humana, corporal, de Cristo. Ainda outros negaram a santidade do matrimônio,  incapazes de reconhecer a relação sexual entre um homem e uma mulher como uma realidade querida por Deus. E a partir desses e outros traços, a imagem que fizeram de Cristo resultou em uma pintura bastante deformada. Esse tipo de falsificação tem se manifestado claramente nas diversas doutrinas gnósticas que tem emergido ao longo do tempo, como a dos cátaros na idade média. E, de algum modo, em grande parte pela fraqueza humana, se insinua insistentemente e de forma sorrateira entre os cristãos nos dias de hoje.

Outra forma de deformação, comum nos dias de hoje, é a associação clara e quase direta de Jesus Cristo a uma ideologia política. Há alguns que pretendem apresentar a imagem de um Jesus engajado politicamente, tal qual um militante de esquerda ou um libertário. Outros, no outro extremo, querem nos fazer crer em uma imagem de Jesus que o reduz a um mero defensor dos "valores e bons costumes". E muitas vezes esses dois partidos entram em conflito entre si, colocando a imagem de Jesus no meio da briga, acreditando que o vencedor será o time que demonstrar que a imagem do autêntico Cristo se assemelha mais à própria imagem. Não parecem estar muito preocupados em seguir o exemplo de Cristo, mas em demonstrar que era Jesus quem seguia o exemplo de vida deles.

Como encontrar o verdadeiro Cristo, então? Se mostrasse a minha própria visão, provavelmente criaria a mais deformada imagem de todas. Para encontrar a Cristo, não há outra forma senão conhecer o testemunho que deixaram aqueles que conviveram com Ele e com os apóstolos. Esse testemunho está relatado nos Evangelhos.

Ainda que tal tarefa seja realmente muito difícil, uma imagem autêntica de Cristo só poderá se formar em nós se aceitarmos o relato despido dos nossos preconceitos. E isso é muito difícil, pois Cristo realmente pode ir contra a nossa visão de mundo. O olhar preconceituoso tende a filtrar tudo aquilo que se opõe às suas convicções e hábitos arraigados. O Cristo que abraça as crianças e se permite ter os pés lavados com as lágrimas de uma pecadora arrependida é simplesmente apagado do quadro dos rigoristas. O Cristo que reprova até mesmo os pensamentos maliciosos e perversos de adultério e impureza e que reafirma a indissolubilidade do matrimônio nunca existiu para o libertário. O Cristo que afirma que muitos se farão celibatários por amor ao reino dos céus é solenemente ignorado pelos que pretendem negar a autenticidade das vocações religiosas. O Cristo que ensina que não se pode servir às riquezas e a Deus simultaneamente nunca existiu para toda essa gente que faz uso seletivo e ideológico das Suas palavras para conservar e aumentar a sua riqueza. Poderia encher essa lista com muitíssimos outros exemplos, mas acho que já não é mais necessário.

Para entrar no reino dos céus é necessário se fazer tão simples como uma criança. Sim, de fato a criança é simples, pois seu olhar não está tão carregado de preconceitos e maus hábitos adquiridos. Por isso, é capaz de ver a realidade com olhos limpos e transparentes, através dos quais nada fica retido. E eu confesso: gostaria de ter os olhos limpos como o de uma criança para poder ver a autêntica imagem de Cristo.