sábado, 16 de fevereiro de 2013

Adendo ao post "Ocultamento, informação e obediência"

No meu último post "Ocultamento, informação e obediência", toquei no tema do sigilo judicial nos processos institucionais para a apuração de delitos cometidos por seus membros. Tinha em vista em particular o caso da Igreja. Alguns leitores chamaram a atenção ao fato de que a revelação do mal fere não somente a instituição como um todo, mas também a de cada um dos envolvidos, às vezes não necessariamente somente os culpados.

Para resolver o problema da conveniência da publicação da identidade dos envolvidos no processo, é necessário ter em conta vários fatores. Em primeiro lugar, deve-se ter em conta as características do poder que julga o processo. Também é necessário avaliar a conveniência da publicação tendo em vista a utilidade da informação para o público, ponderando os danos potenciais da ocultação dessa informação e os danos reais aos interessados no caso de publicação. Além disso, deve-se ter em conta o direito à preservação da intimidade das vítimas, mais grave no caso de menores, e a proporção entre o dano cometido pelo ofensor e o dano que ele sofrerá em decorrência da publicação.

A um julgamento que ocorre em âmbito civil não se aplicam os mesmos critérios de um julgamento eclesial. Nesse último caso, é costume preservar o sigilo judicial ao longo de todo o processo envolvendo um delito grave, como é o caso do delito da pedofilia cometida por ministros ordenados. Uma vez concluído o julgamento, caso se verifiquem verdadeiras as acusações, é imposta uma pena canônica, que pode variar desde a suspensão do direito de celebrar a Missa e ouvir Confissões e a imposição de uma vida de silêncio e oração, até, em casos mais graves, à demissão definitiva do estado clerical. Não é dada uma sentença formal, mas fica claro pela natureza das penas qual foi o resultado do processo.   

Em alguns países de língua inglesa e na França, a lei exige que o bispo comunique às autoridades civis, caso fique sabendo, fora do sacramento da Comunhão, de algum caso de pedofilia. Nos outros casos, a Igreja entende que seria muito pesado exigir do bispo que denunciasse um padre sob sua jurisdição, pois seria um ato tão difícil quanto o de "denunciar o próprio filho". Para contornar essa dificuldade, os bispos são orientados pela Congregação da Doutrina da Fé a acolher a família da vítima e orientá-la a fazer uma denúncia às autoridades civis.

A minha opinião pessoal sobre a matéria é que em caso de delito grave, no âmbito da justiça comum, não há razão suficiente para ocultar a identidade do réu do processo. Caso o processo venha a se tornar de amplo conhecimento público, não é incomum que o réu e as pessoas próximas a ele possam vir a sofrer retaliações ou, pelo menos, a exclusão social. Mesmo em uma sociedade plenamente consciente do princípio da presunção da inocência, a dúvida quanto à verdade do caso desestabiliza as relações de confiança do réu com a sociedade. Apesar disso, entendo que a tutela do bem comum prevalece sobre o interesse de um indivíduo. Logicamente, devido às sérias consequências sobre o acusado pelo simples fato de ser acusado em público, a lei deve prever uma punição muito severa nos casos de falsa acusação, em proporção à gravidade da acusação. 

Respondo à crítica de que esse ponto de vista faz o coletivo prevalecer sobre a dignidade da pessoa. De fato, a dignidade da pessoa pode ser ferida pela desconfiança e retaliação injusta. No entanto, a dignidade de muitas pessoas fica seriamente desprotegida quando é deliberadamente ocultada a informação de que um indivíduo pode, com alguma chance, representar um perigo para a sociedade. Quando não há diferença no qualitativo, prevalece a diferença no quantitativo. Em concreto, fica fácil entender essa idéia no caso de um pedófilo. O ocultamento da informação a respeito do seu vício, ainda que apenas suspeito, pode permitir a um verdadeiro infrator continuar fazendo outras vítimas. Nesse caso, a gravidade do dano que pode ser causado a novas vítimas justifica,  sem sombra de dúvida, o dano que pode ser causado a um réu inocente pela publicação das falsas acusações. 

No caso dos julgamentos em âmbito eclesial, entendo que seja de fato melhor conservar o sigilo judicial em todos os casos de delito grave. Isso porque, ao contrário da justiça comum, a Igreja que julga também deve ter uma relação maternal com o réu, por ser um fiel e um servidor. Além disso, a Igreja não tem meios, atualmente, para compensar o inocente desonrado com uma condenação severa da falsa acusação. No entanto, a partir do momento em que ocorre a acusação, seria prudente e obrigatório, da parte do bispo, tomar todas as atitudes cabíveis para afastar o réu de trabalhos pastorais que o possa colocar em ocasião de cometer novas transgressões. Ao mesmo tempo, o bispo deve sempre seguir a recomendação anteriormente citada da Congregação da Doutrina da Fé  
Por último, no caso de menores ofendidos, o sigilo judicial com relação a sua identidade deve ser respeitado em todos os casos. 

Referências
As informações sobre os julgamento de delitos graves na Igreja extrai de uma entrevista de um promotor de justiça da Congregação da Doutrina da Fé, publicada no site http://www.ewtn.com/vnews/getstory.asp?number=101031.   

Observações
Não sou experto nem em direito comum nem em direito canónico. O conteúdo desse texto expressa uma opinião pessoal e não a posição oficial da Igreja ou de outra instituição. Caso alguém identifique algum ponto que necessite de retificação, agradeceria a correção.

 
 

    

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

Ocultamento, informação e obediência


Alguns pessoas dentro da Igreja querem passar a impressão aos fiéis leigos de que tudo ali dentro funciona em perfeita ordem e harmonia. Às vezes se justificam dizendo que, assim como as crianças pequenas de uma família não devem ficar sabendo das ameaças e crises familiares, para não ter a sua felicidade pueril destroçada, também os fiéis comuns devem ser poupados das más notícias.

A prudência comum mostra que de fato é melhor não impor às crianças o fardo do conhecimento das realidades duras da vida. Mas a comparação com os fiéis da Igreja não é válida, pois já não são mais crianças. Se por um lado é natural que assuntos internos relativos à administração da Igreja não precisem ser de conhecimento público, devem pelo menos ser de tal modo conduzidos que, caso fosse levantada alguma suspeita, todas as atividades até então conduzidas em discrição pudessem ser integralmente reveladas, sem receio algum de que alguma irregularidade fosse encontrada.  

Na realidade, bem sabemos que em todas as realidades temporais e também nas eclesiais, existem enormes faltas à lei de Deus e à moral cristã. Logicamente, quando há falta, quase sempre há ocultamento, pelo simples fato de que as pessoas envolvidas não querem ser punidas e desejam continuar se beneficiando das iniquidades que praticam em segredo. Por outro lado, há também o ocultamento dos escândalos promovido com o objetivo de salvaguardar a reputação da corporação que sairá inteiramente lesada pela má conduta de poucos.

Esse último tipo de ocultamento é mais compreensível do ponto de vista ético, e muitas vezes é praticado por pessoas boas, que tem a intenção de proteger a integridade da corporação. Isso acontece na Igreja. Essas pessoas estão na realidade entre os que mais sentem indignação pela má conduta alheia, pois, ao colocar em risco a reputação da instituição, ela simultaneamente fere a reputação e boa fama daqueles que se entregaram sinceramente por ela.

Não é um dilema de fácil solução. Se, por um lado, a revelação do mal fere a instituição como um todo, por outro lado, o ocultamento permite que a má conduta seja perpetuada, se fortaleça e acabe destroçando a vida de mais e mais pessoas inocentes. Uma possível solução para o problema consiste em aplicar severas penas em âmbito interno, conservando em segredo do mundo exterior todo o processo e suas causas.

Em alguns casos essa solução pode ser aceitável, mas em outros a revelação da informação pode ser necessária para que as pessoas inocentes possam se proteger. Além disso, se por um lado a instituição pode perder sua boa fama quando um escândalo vai a público, por outro lado a exemplaridade de um julgamento  público e transparente tende a desestimular a ação dos corruptores, ao mesmo tempo que conquista a confiança dos homens de boa vontade.

Cristo bem ensinou que é necessário ser manso como as pombas, mas esperto como as serpentes. Os leigos não podem se comportar como crianças, nem mesmo os jovens. Não podem ser ingênuos, pois quem é ingênuo corre maior perigo. Há bons e maus pastores dentro da Igreja. Um certo grau de desconfiança com relação às pessoas e instituições da Igreja não pode ser reprovada como uma atitude de desconfiança com relação a Deus, pois o homem é falível. Maldito o homem que confiou no homem!  

Algumas raposas e lobos espertos utilizam um discurso bastante capcioso para conquistar à força a confiança dos fiéis. Esse discurso, podendo apresentar as mais diversas e rebuscadas formulações, consiste em persuadir o outro de que é um representante de Deus e que tudo o que diz e manda é a própria vontade divina e ainda que desconfiar disso é o mesmo que desconfiar de Deus. De fato, a autoridade da Igreja, representada pelos seus ministros (padres, bispos), deve ser respeitada pelos fiéis como procedente de Deus. Mas essa autoridade não é incondicional; como os homens são falíveis, sua autoridade deve passar pelo crivo da razão iluminada pelos mandamentos. Além disso, o escopo da sua autoridade se restringe exclusivamente ao campo espiritual.

Esse critério é válido para um leigo, que, não estando sob os vínculos do voto de obediência, tem resguardada a integridade da sua auto-determinação dentro dos limites da lei de Deus. Um monge ou um frei, pelo voto de obediência, entrega sua auto-determinação e se dispõe a obedecer a tudo o que não fere a lei de Deus. Um monge precisa da autorização do abade para sair do monastério, mas logicamente um leigo comum não precisa de autorização eclesiástica para deixar sua casa ou até se mudar de país!

Um tradicional critério sobre a obediência, diz que ela é virtuosa apenas quando exercida em razão da autoridade de quem manda e não das suas qualidades. Isso é verdadeiro, mas também é verdadeiro afirmar que a obediência só pode ser virtuosa quando não atenta contra a consciência formada nos mandamentos de Deus. Tomar em sentido amplo e irrestrito uma afirmação do tipo "quem obedece nunca erra" pode levar a erros monstruosos. Erra sim quem comete um crime a mando de um representante eclesiástico. A intenção dessa frase é transmitir a idéia de que agir em obediência a um autêntico representante de Deus, no âmbito sob cuja autoridade se está vinculado, sempre é proveitoso, mesmo que apenas do ponto de vista espiritual.

Há muitos fiéis dentro da Igreja que foram duramente traídos pela infidelidade de seus pastores. Penso na já bem conhecida história do fundador de um famoso movimento contemporâneo, que exigia uma rigorosa obediência dos colaboradores mais próximos, que era muito hábil em conseguir doações de fiéis ricos, que tentou sabotar outros movimentos da Igreja, e, que depois de tanto tempo praticando suas iniquidades, ao fim da vida, teve todas suas más obras reveladas ao grande público, causando grande dano à instituição que fundou, formada por pessoas muito bem intencionadas. Por isso, não sejamos mais ingênuos como as crianças. E, para isso, não podemos ter medo de buscar a informação, pois a informação verdadeira é recurso imprescindível para a aplicação acertada de todo julgamento prudencial.    

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A recente notícia da renúncia do papa me abalou. Tinha e continuo tendo total confiança em Bento XVI. A razão do meu desconforto foi a perda da segurança que esse papa corajoso e fiel me dava. A segurança de que a Igreja estava sendo protegida dos lobos que trabalham dia e noite para envenená-la através da corrupção moral, doutrinal e física do seu corpo. Mas, depois de analisar os fatos, e ponderá-los, entendi que a renúncia de Bento XVI foi necessária em um momento em que talvez a sua debilidade física e mental já não permitisse mais o enfrentamento dos lobos de dentro e de fora. Tenho total confiança de que o próximo papa deve continuar esse serviço corajoso. O papa Bento XVI foi o papa da Eucaristia, aquele que firmou a Igreja nesse pilar. Deus queira que o próximo seja aquele a firmar a Igreja no pilar de Nossa Senhora. Apoiados nesses dois pilares, a Igreja resistirá e vencerá os seus inimigos, cumprindo-se o sonho profético de Dom Bosco.