domingo, 23 de dezembro de 2012

Um Tempo de Luz e Esperança

Qualquer um que resolva olhar friamente a realidade que o cerca, será obrigado a reconhecer que agimos como se o essencial para o nosso sucesso fosse o dinheiro, o poder e o sexo. Nossas grandes miragens de felicidade sempre envolvem esses três elementos. De fato, são esses os requisitos necessários para a satisfação dos apetites. Se alguém os tivesse sem limites, então também não haveria limites para a satisfação nem tampouco margem para o sofrimento.

Muitos já devem ter imaginado um mundo onde todos os apetites pudessem ser satisfeitos assim que brotassem. E alguns devem ter chegado à conclusão de que, se esse lugar existisse, então aí teria que ser o paraíso. E outros mais talvez até tenham chegado a pensar que, se fossem eles mesmos Deus, fariam um Universo para satisfazer os apetites das criaturas com delícias sem fim. E porque o universo não é assim, outros ainda tem  chegado à conclusão de que Deus não passa de um delírio.

Mas não é um delírio. Quando Deus veio à terra, prescindiu da segurança que o dinheiro e o poder podem dar. Nasceu em uma família pobre e impotente aos olhos do mundo. Desse modo, Deus Pai ensinou através dos acontecimentos regidos pela sua providência aquilo que o seu Filho viria a ensinar através de atos e palavra.

Agora é a hora de dar uma pequena pausa às ocupações para contemplar o menino-Deus. Ele tem algo muito importante para nos dizer e bem sabemos que precisamos ouvi-lo. Se Ele prescindiu desses bens cuja falta nos angustia, talvez tenha sido para nos ensinar que não é isso o que realmente importa. Há algo maior, além desse mundo e maior do que ele, que não vemos, mas existe. Esse menino que nasceu pobre veio trazer o testemunho desse outro mundo. Se tivesse chegado ao mundo dentro do mais rico palácio e no mais poderoso reinado, não poderia ser Deus. Mas nasceu pobre, em sinal claro aos corações dos homens de boa vontade, que se enchem de esperança ao contemplar a infinita bondade de nosso Deus.       

domingo, 16 de dezembro de 2012

Monster

Os desentendimentos e conflitos entre o homem e a mulher sempre existiram e estão impressos nos costumes de todas as culturas humanas. As razões por trás desses conflitos são bastantes complexas e não podem ser reduzidas a uma única e simples explicação, como a bem conhecida tese de cunho marxista que transpõe a luta de classes na sociedade para o âmbito da relação entre homem e mulher. Existem outros elementos muito mais relevantes para a explicação desse fenômeno, pois a psicologia e a natureza animal e espiritual do ser humano precedem a sociologia na ordem das causas.

Esse conflito entre homem e mulher constitui uma das maiores tragédias que tem afligido constantemente e sem cessar toda a humanidade. É trágico pois a forte necessidade de reciprocidade entre os sexos fica frustrada, gerando um enorme descontentamento que se projeta para além da esfera pessoal e atinge toda a sociedade. Uma sociedade não pode ser saudável sem a harmonia nas relações entre homens e mulheres.

Há muitas facetas e sintomas dessa doença em nossa sociedade, e por enquanto gostaria de me restringir a apenas uma delas. Ultimamente, não tem sido nada incomum encontrar pessoas dominadas por um ódio generalizado pelo sexo oposto A razão para esse fenômeno é o que em um post anterior designei de frustração do amor.

Pela sua própria natureza, o ser humano encontra na pessoa do sexo oposto o receptáculo para todo o seu potencial afetivo. Em outras palavras, ele tem a expectativa de encontrar um outro a quem possa entregar a si mesmo sem reservas, recuperando-se a si ao receber também sem reservas aquele a quem se entregou.

No entanto, boa parte de nossa sociedade se tornou descrente da possibilidade da existência desse outro. Ninguém mais acredita em "princípes encantados" ou em "belas adormecidas". Na realidade, todos em algum dia de suas vidas acreditaram sim em seu "princípe encantado" e em sua "bela adormecida". Porém, a frustração dessa expectativa, que sempre existiu, mas que hoje em dia é mais comum devido à forte presença do egoísmo na sociedade atual, leva as pessoas à descrença total na lealdade do sexo oposto. Frases do tipo "os homens não prestam" ou "toda mulher é vagabunda" refletem essa frustração.

Essa frustração pode adquirir contornos realmente trágicos. Entre os homens, o ressentimento e o ódio tem frequentemente os conduzido à violência brutal contra a mulher. No caso das mulheres, o mesmo ressentimento as conduzem a um desprezo que não perde nenhuma oportunidade para aniquilar o homem afetivamente frágil que cai nas suas garras.

Essas matanças de pessoas inocentes empreendidas por homens armados tem a mesma raiz, que é essa frustração do amor agravada e jamais superada. Essa é uma tese forte, que não vou provar agora, mas que em algum momento pretendo discutir com maior detalhe. Limito-me a apontar alguns indícios. O assassino do realengo, por exemplo, foi seletivo ao escolher as suas vítimas, meninas. Recentemente, a polícia impediu uma ação de dois jovens indivíduos que pretendiam explodir uma bomba em uma festa cheia de estudantes universitárias de humanidades "pra-frentex". Breivik, da Noruega, carrega uma clara frustração que remete aos traumas da sua infância relacionados com a ruptura de sua família.

Pensando sobre o assunto, lembrei-me de um filme que retrata a história real de uma prostituta que realizou assassinatos em série. O filme se chama Monster e não o recomendo para ninguém, apesar de retratar uma realidade que ensina muito sobre aqueles efeitos trágicos a que me referi. Aquela prostituta foi pouco a pouco acumulando um enorme ódio contra os homens em geral. Isso é 100% compreensível, pois se uma mulher não tem a experiência do encontro com homens verdadeiramente ternos e desinteressados, capazes de amar, e é constantemente tratada por eles como um objeto descartável, então entendo o seu ódio. Mas o ponto alto do filme acontece quando a prostituta encontra um homem que na verdade apenas se dipôs a lhe dar uma carona e não tinha a menor intenção de usá-la. Aquela mulher, mesmo percebendo a boa intenção do homem, decide assassiná-lo, levando o seu carro e o seu dinheiro.

O encontro com um homem realmente desinteressado não foi capaz de humanizar o seu coração já há muito tempo endurecido. Como o seu coração de mulher tinha essa necessidade de amar e ser amado, ela encontra em uma parceira do mesmo sexo essa pessoa com quem possa desenvolver todo o seu potencial afetivo. O filme mostra que na relação com essa outra pessoa, aquele "monstro" se transforma em uma mãe terna e boa. Ou seja, na incapacidade de entrega a um homem, que seria o único modo natural e verdadeiro de encontrar a felicidade relacional, ela tem de transpor esse desejo frustrado de realização a um relacionamento postiço e artificial com uma outra mulher. Aquele acontecimento simboliza o estágio desse processo; ela preferiu matar um homem que se dispôs a ajudá-la e utilizar o espólio para nutrir um relacionamento vicioso que a mantinha naquela situação miserável.

Hoje entendo bem por que motivo São João Batista e depois Jesus Cristo moveram muitas prostitutas à conversão. Neles, e de maneira muito contundente em Jesus, elas encontraram um homem terno, desinteressado e casto que as acolheu sem massacrá-las com acusações e penalizações pelos seus pecados. A verdadeira imagem do homem rehumanizou o coração daquelas mulheres e as recordou da sua vocação para o Amor. Não é nada indiferente o fato de Jesus ter se deixado tocar pela pecadora arrependida. Mas isso já é algo que mereceria um tratamento muito especial em algum outro post...             

   

      


           

domingo, 9 de dezembro de 2012

A Esterilidade Ambientalista

Está presente no discurso de muitas ideologias, ainda que de maneira implícita, um sentimento de desconforto com o tamanho da população humana. Por trás de um discurso aparentemente legítimo baseado na preocupação com a escassez de recursos e danos ao meio ambiente, reside na realidade um núcleo interno de motivações totalmente egoístas e muitas vezes misantrópicas.

O discurso ambientalista atual incluiu entre as suas premissas a noção de que o ser humano é apenas mais um animal da terra. Se foi capaz de se impor como a espécie dominante no planeta terra, cuja população nenhuma força da natureza é capaz de controlar, então seria justo da parte da própria humanidade controlar a sua população em solidariedade ao ecossistema colocado em risco por esse crescimento.

Esse tipo de pensamento gera um sentimento de desconforto na sociedade e também no indivíduo, que é levado a imaginar-se culpado por essa suposta destruição da natureza. Levado ao extremo, esse raciocínio ambientalista reduz a sociedade humana a uma praga fora do controle que deve ser parcialmente eliminada. Lembra-me a postura do Mr Smith no filme Matrix, ao descrever a humanidade com desprezo, comparando-a a uma infecção viral sobre a terra.

Põe-se em evidência então essa nota perigosamente misantrópica implícita no discurso ambientalista. O mais paradoxal é o fato dessa mentalidade ser mais comum entre pessoas mais jovens. De fato, até algumas décadas atrás, boa parte da população ainda teve uma experiência real da natureza e sabe como ela muitas vezes é extremamente hostil ao esforço humano pela sua subsistência e dos seus parentes. Totalmente distanciados desse dura realidade graças ao avançado grau de desenvolvimento técnico da sociedade atual, a maioria dos jovens desconhece completamente a dureza da relação dos seus antepassados com a natureza. Seduzidos por uma visão pueril e nostálgica das belezas naturais do planeta terra, que lhes parece estar sendo privadas pelo mundo moderno, que as destrói e despreza, aderem de maneira irrefletida às premissas da ideologia ambientalista.

Se por um lado é legitima essa preocupação com a qualidade do meio ambiente em que vivemos, às vezes escapa à ideologia ambientalista que, na realidade, o centro dessa preocupação é o próprio ser humano. Nenhuma outra criatura do planeta terra está "preocupada" com o meio ambiente. Ao preocupar-se com o meio ambiente, o indivíduo está interessado na sua qualidade de vida e dos seus iguais. Nenhum indivíduo pode esquecer de ponderar que a sua própria existência é uma pré-condição para o interesse pela conservação do meio ambiente. E também que a sua existência é um fator de pressão sobre a natureza, não apenas a dos que estão para nascer.

Portanto, propor a limitação da existência humana, através do controle populacional, como solução ao problema ambiental é um contra-senso. No fundo, significa dizer que, para que os vivos tenham uma qualidade de vida superior, então que se limite a oportunidade de novas vidas humanas virem à luz. Em outras palavras, seria como dizer: "queremos que nossos filhos tenham um mundo melhor e para isso é necessário não deixar alguns deles nascerem". A pergunta crucial é essa: será que o melhor é que, para que alguns possam viver em um mundo "preservado", muitos que poderiam vir à existência nunca tenham a chance de nascer?

Na realidade, trata-se de uma questão de generosidade. A natureza nos diz claramente que não gosta de limitações, e nos demonstra isso até a exaustão através de incontável quantidade de entidades produzidas em seu seio (quem não se admira da inimaginável quantidade de galáxias e estrelas presentes no universo?). A natureza é uma abundância de generosidade que, no fundo, incomoda os corações mesquinhos. Quem realmente ama o ser humano e é alguém a quem realmente se pode classificar como humanista, bem sabe que a preservação do meio ambiente não é um pretexto válido para a limitação da população humana.



               


sábado, 1 de dezembro de 2012

Separará uns dos outros

Há uma passagem do Evangelho que sempre me deixou bastante intrigado e desde o início tem me causado uma surpresa positiva. Trata-se da passagem de São Mateus em que Jesus fala sobre a separação entre os homens no juízo final (Mt 25, 31-46). Nessa passagem Jesus deixa claro qual será o critério de separação entre os homens. E, para minha surpresa, Jesus não separa os homens entre os observantes da lei e os transgressores, mas sim os separa entre aqueles que praticaram obras de misericórdia ("tive fome e me destes de comer, tive sede e me destes beber")  e os que nunca a praticaram.

Ao longo da minha caminhada tenho observado que muitos de nós estamos muito mais preocupados em observar os mandamentos do que praticar as obras de misericórdia. Tantas vezes me decepcionei ao testemunhar que pessoas que fazem oração diária, vão à Missa todos os dias e vivem escrupulosamente todos os preceitos da lei, tantas vezes olham com completa indiferença ou até desprezo a esses pequeninos a que Jesus se refere.

A realidade nos mostra que esses pequeninos nem sempre são pessoas agradáveis. Um mendigo em situação de necessidade não é alguém agradável. Estará cheirando mal, poderá ser rude no trato e extremamente inconveniente. Mas se está passando sede ou frio, e há a possibilidade de remediar a sua situação, todos esses inconvenientes não são desculpas válidas para que um cristão deixe de oferecer ajuda.

Algumas pessoas se enganam achando que um dia toparão com um galã perfumado e bem educado, sedento e faminto, implorando meigamente por socorro. Isso não existe no mundo real. No mundo real, os necessitados às vezes também reagem com rudeza, ingratidão e até com maldade àqueles que oferecem ajuda.

Há alguns anos atrás ouvi uma pequena história que me tem feito pensar sobre a atitude de alguns cristãos.    

Em uma cidade perdida em um país distante havia uma família cristã que construiu uma grande casa para os seus jovens filhos. Todos viviam bem ali e praticavam os preceitos da sua religião na mais escrupulosa observância. Havia um belo jardim no pátio de entrada da casa, mas certo dia a pureza daquele local foi atormentada pela presença inconveniente de um mendigo que ali se instalou. Não sabendo como reagir diante daquela situação, um dos filhos teve a brilhante idéia de jogar sobre o homem um balde de gelo. Se recuperando do choque, o mendigo bradou: "vocês são judeus, não cristãos!".

Aquele mendigo não poderia ter sido mais preciso. Aqueles filhos estavam muito preocupados em observar as leis, mas nenhum deles soube olhar para aquele mendigo com o olhar de Cristo. Podemos imaginar como a mãe do mendigo o olharia na situação. Uma coisa é certa: o olhar de Cristo seria ainda mais compassivo do que o da mãe.

A história continua. Um outro filho, compadecido da situação do mendigo, foi conversar com aquele homem. Explicou a situação para ele e deu atenção ao que o mendigo dizia, que  apesar de tudo continuava sendo insistente e teimoso. Por fim, convenceu o mendigo a ir para um abrigo e o levou para lá.

É triste dizer isso, mas a primeira parte da história é verídica; a segunda, fictícia.               

segunda-feira, 19 de novembro de 2012

Estridentes e Histriônicos

"Uma união formal entre pessoas do mesmo sexo será o que for, mas jamais será um matrimônio, e desde os valores cristãos sempre será imoral (Cardeal Rivera)".
Essa verdade é irrefutável dentro da definição do matrimônio como união entre um homem e uma mulher. Isso não é apenas uma convenção social, mas também a única definição que se adapta à realidade biológica.
Há muitos que querem mudar essa definição e perpetuar essa adulteração às novas gerações, destruindo qualquer pessoa e instituição que se oponha. No fundo, no fundo, muitos se sentem profundamente incomodados que os outros não vejam a sua união homossexual como algo normal, como um matrimônio. Pensam que quando isso for aceito socialmente, então ficarão satisfeitos, e se sentirão bem consigo mesmos. Ledo engano... A raiz do descontentamento dos homossexuais é outra. Seu descontentamento vem simplesmente da sua dificuldade de conciliar a sua sexualidade com a sua natureza biológica. Enquanto isso não for reconhecido, continuaremos vendo um montão de homossexuais com complexo de rejeição, colocando a culpa em meio mundo, mas sem pistas a respeito da verdadeira origem de seu desconforto.

sábado, 17 de novembro de 2012

Espírito Esportivo

Na postagem Coração das Trevas conclui o texto propondo um paradoxo. Um paradoxo é sempre uma contradição aparente e em geral a solução dela não é trivial. Trata-se de um paradoxo existencial, que há bastante tempo me tem consumido horas de reflexão. Meu objetivo agora é mostrar aquela que é, por enquanto, a solução mais satisfatória que encontrei.

Formulei o paradoxo com as seguintes palavras:

Se, por um lado, a disputa é evitada, não há conquista, e o indivíduo se frustra, pois não alcança o seu desejo, e ainda é visto como covarde pelos outros. Se, por outro lado, entra na disputa, pode ferir e destruir, deixando atrás de si um rastro de destruição, ou ser aniquilado.

 A primeira frase é verdadeira sempre que um indivíduo foge da disputa em todos as ocasiões. É alguém que sempre se deixa dominar pelo medo. Acaba passando a impressão de que não há nada pelo que vale à pena lutar e passa a ser visto pelos outros como um sujeito bonzinho, manso e inofensivo. E é bem verdade que esse indivíduo vai acabar frustrado, muitas vezes assumindo a fama de bonzinho, acreditando que nisso há alguma virtude.

A realidade mostra que toda luta é um empreendimento em que se coloca algo de si em risco. Mas nem toda luta precisa deixar um rastro de destruição. Observei que o homem aprendeu a humanizar a disputa. Gosto da definição de homem, cuja autoria é atribuída a Raimundo Lúlio, de acordo com a qual o homem é aquele que humaniza. E o modo como o homem humanizou a disputa foi através do espírito esportivo ou, simplesmente, do esporte.

Quando alguém diz que é necessário ter espírito esportivo, entende-se bem o que se quer dizer. Significa que não há mal algum em entrar na disputa para vencer, contanto que não se utilize da trapaça e de práticas desleais para garantir a vitória. Significa que não há mal em comemorar a vitória com emoção e alegria, contanto que não se humilhe o derrotado. Significa também que não há mal em sentir a angústia da derrota, contanto que isso não acabe por degenerar em desejo de vingança ou depressão.

Entenda-se que o espírito esportivo não se aplica apenas ao âmbito estritamente esportivo. Na realidade, o esporte é um espaço simbólico que serve como "sala de aula" para a aprendizagem e ensino de um comportamento que humaniza as disputas reais da vida. Não é um jargão vazio dizer que o esporte é um meio eficaz para "tirar a juventude" das drogas e da criminalidade. Também não é ingenuidade afirmar que os jogos olímpicos tem uma função fundamental de pacificação entre as nações.

As realidades humanas, como o esporte, estão sempre dotadas de uma densidade enorme, mas quase imperceptível, de significado antropológico. O que os mais intelectualizados (e chatos, talvez) dentre os homens tentam fazer é colocar em evidência esse significado. Mas entre os "intelectuais" há duas posturas. A primeira é a do racionalista, que se acredita capaz de esgotar em seu sistema lógico todo o significado das realidades humanas, trivializando-as. Esse acaba colocando-se acima dos outros "reles mortais" inconscientes das verdadeiras motivações por trás das suas ações. A segunda é a do verdadeiro filósofo, que  se admira do ser humano, e percebe a riqueza inesgotável contida nas diversas manifestações de humanidade.  Em vez de ver o outro - em especial os antepassados - com desprezo, entende que a sabedoria que o passado transmite é muito maior do que a sua.         








       

domingo, 4 de novembro de 2012

A frustração do amor

Todo ser humano tem uma necessidade primordial do amor incondicional, esperando-o e buscando-o sem cessar. Sendo uma necessidade latente, ainda que mais intensa e abrangente que todas as outras, de alguma forma abarcando-as todas, impulsiona o homem a uma busca incessante capaz de suscitar todo o seu potencial de criação e destruição.

A primeira experiência de amor incondicional acontece na família, quando aqueles que se responsabilizam pela criança respondem positivamente ao dever de amá-la. A frustração do amor nesse momento da vida de um ser humano tem um efeito devastador na alma, conduzindo-a a uma amargura e revolta que convertem o seu potencial de criação em energia apta à destruição de si e do mundo a sua volta. De todas as faltas de responsabilidade dos pais, a mais ímpia e cruel é o aborto. Aquela criança, a quem os pais teriam a responsabilidade de prover a primeira experiência de amor, tem a vida tolhida por ser considerada indesejada. Um ser humano abortado sofre duas tristes experiências de desamor: ser indesejado e destruído.

Essa primeira experiência do amor incondicional é imperfeita, pois, à rigor, esse amor não pode ser incondicional. Há um limite para o amor que um ser humano pode oferecer ao outro. A criança percebe que participa de uma comunhão de amor na qual não só ela necessita de atenção, mas também todos de sua família. Nesse processo, entende que nem sempre terá sua carência satisfeita, ao mesmo tempo que, se bem educada, perceberá que ela pode dar amor a quem tem carência dele.

O término dessa primeira experiência é a abertura da alma para uma nova experiência de amor, ainda movida por aquela necessidade primordial. Tendo recebido a primeira experiência de ser querido por si mesmo, percebe o potencial que existe dentro de si para amar o outro e reconhece em si a dignidade de quem pode ser amado. Deseja a entrega de si, ao mesmo tempo que espera a entrega incondicional do outro, para que possa dar-se sem reservas. Essa segunda experiência se concretiza no matrimônio entre um homem e uma mulher.            

Nesse processo, a possibilidade de frustrações é tão grande quanto a de conseqüências imprevisíveis e violentas. Todas elas se resumem em poucas palavras: a experiência de ter o amor rejeitado pelo outro. Dessa experiência não escapam nem mesmo aqueles que se casaram com o seu primeiro enamorado, pois, com o passar do tempo, revelam-se claramente as imperfeições da criatura amada, e a rejeição mútua põe à mostra a fragilidade daquele amor.

A frustração do amor acontece com todos os seres humanos e como consequência todos padecem de um sofrimento interior nas raízes mais profundas da alma. Uma das saídas para esse sofrimento é a revolta, que  se concretiza nas mais diversas formas de auto-destruição. Todo pecado é um exemplo dessa forma de auto-destruição que tem como origem essa frustração. Mas há outra saída para o sofrimento. Não é uma saída que leva à sua supressão, mas a uma compreensão vital do seu sentido. A alma entende a sua imperfeição e sua carência e reconhece em Deus a única fonte que pode saciá-la.      




sábado, 27 de outubro de 2012

O Coração das Trevas


Na sua sede por domínio, o ser humano é capaz de destruir todo obstáculo que obstrua suas paixões, contanto que tenha força para isso. Na maior parte dos casos, esse obstáculo é uma outra pessoa. Não conseguindo uma solução de compromisso entre a vontade própria e alheia, a destruição do rival aparece como a única solução para a conquista.

E desse modo, na luta incessante contra os outros, o indivíduo vai conquistando território e formando o seu reinado, isso se não for aniquilado no processo. Mas o custo do seu reinado é um passado de ruínas. Há também um custo atual, que é o estado de permanente tensão em virtude da ameaça exterior ao território conquistado. E há também a certeza do envelhecimento e da morte, certa tanto para os que dominam quanto para os que são dominados.

O custo do passado em ruínas é muito mais alto do que parece, pois ele cobra esvaziando o significado do presente e corroendo o conteúdo ontológico da pessoa até reduzi-la irreversivelmente ao nada. Essa realidade emblemática da vida está magistralmente exempĺificada, de modo simbólico, na trajetória de Bastian em Fantasia, narrado em A História Sem Fim de Michael Ende.

Para passar essa idéia do plano abstrato para o concreto e ajudar a compreensão do seu conteúdo, não vejo outro modo de fazer que não seja por meio do exemplo. A trajetória de Bastian ilustra bem esse idéia, mas nem todos leram o livro e, além disso, o caráter alegórico da estória traz outras dificuldades. O exemplo que proponho é bem banal, o de um indivíduo que foi desleal com o seu melhor amigo, e perdeu-o, infiel à esposa, e divorciou-se, injusto com o seu irmão de sangue e negligente com os pais, e desvinculou-se da própria família. Foi desleal com o amigo, mas com isso conseguiu um posto alto na empresa; infiel à esposa, mas vinculou-se a uma mulher bem mais jovem; injusto com o irmão, mas adquiriu uma herança vantajosa; negligente com os pais, mas dispôs de mais tempo para cuidar de seus negócios.

No final da vida, ao olhar para trás, perceberá que deixou um rastro violento de destruição. Já não sabe mais quem realmente é, pois não há ninguém ao seu lado para recordá-lo. Aqueles que o conheceram e o amaram foram aniquilados.

Essa realidade existencial tem inúmeros exemplos na literatura e na história. A loucura de Nabucodonosor é um exemplo emblemático. As aparentes causas da loucura - o álcool, a sífilis etc - são sinais materiais da ruína existencial. Um outro exemplo brilhante da literatura é o desfecho da vida de Mr Kurtz na novela de Joseph Conrad O Coração das Trevas. Tendo se tornado rei em uma tribo no coração da selva do Congo, por meio do uso irrestrito da violência, Mr Kurtz adquire o poder que desejava para captar quantidades enormes de ébano e remetê-las para uma Companhia européia. A estória é narrada em primeira pessoa por Marlow, o aventureiro encarregado pela Companhia de encontrar o Mr Kurtz, sobre quem havia rumores de que estaria doente. A tarefa termina em êxito, mas Mr Kurtz é encontrado doente, louco, dominado por uma feiticeira tribal, habitando uma tenda cercada por estacas com cabeças humanas espetadas nas pontas. Mr Kurtz acaba convalescendo miseravelmente na presença de Marlow.

Joseph Conrad viveu na mesma época que Nietzsche e ambos captaram, de modo distinto, a pretensão de poder do colonizador europeu do século XIX. Mr Kurtz é o superhomem de Nietzsche. Mas a estória não acaba aí: Mr Kurtz tinha uma grande admiradora, uma mulher que realmente o amava, e que tinha ficado na Europa. O nosso aventureiro a encontra, quando volta para a Europa, e descobre que a mulher o via como o homem mais doce e puro sobre a face da terra. Não que o amor seja cego, pelo contrário, mas a trajetória devastadora a que a sede de poder o impulsionou reduziu-o ao nada e o conduziu ao coração das trevas.  

Mas o desejo de reinar pulsa no coração humano. Se, por um lado, a disputa é evitada, não há conquista, e o indivíduo se frustra, pois não alcança o seu desejo, e ainda é visto como covarde pelos outros. Se, por outro lado, entra na disputa, pode ferir e destruir, deixando atrás de si um rastro de destruição, ou ser aniquilado. Eis um grande paradoxo da existência humana.        


domingo, 21 de outubro de 2012

O desejo régio

Cada ser humano nasce com o desejo de reinar. Deseja no mais íntimo do seu ser desfrutar de um mundo totalmente submetido à sua vontade. Gostaria de ter sob sua posse única e exclusiva todos os recursos da terra. Não descansa enquanto não conseguir construir para si um castelo provido de todos os produtos de sua imaginação. Quer conservar sob total controle seu parceiro sexual e sua prole.

Se tantos obstáculos não se impusessem a esse impulso do coração humano, ninguém conheceria o sofrimento. O principal obstáculo é esse mesmo desejo presente nos outros. O outro é o maior obstáculo à vontade própria. Se o indivíduo deseja para si uma propriedade territorial, uma pessoa ou outro bem, terá sempre que competir com outros caso esse bem seja escasso. Não é preciso dizer que essa competição será tanto mais feroz quanto maior for a demanda e menor a oferta do bem desejado.

Na luta pelo bem desejado, tão grande é a sede imposta pela vontade, que pela sua conquista o indivíduo arrisca a própria vida e ameaça a do outro no combate.

Essa realidade está presente também entre muitas espécies animais. O leão, na procura por sua parceira, se encontra outro leão na posse de harém e prole, travará combate, e, se ganhar, ficará com o harém e matará a prole do antecessor.

Entre os seres humanos, acontece o mesmo. Mas, dotado de consciência e inteligência, é capaz de entender a própria condição. Essa capacidade lhe dá a possibilidade de adotar novas estratégias ou até mesmo de se recusar a entrar na disputa.

Mas ainda assim enfrenta um novo sofrimento: se recusar a disputa, não terá o prêmio, e se frustrará. Se, por outro lado, já tem para si um reino, ele estará sempre ameaçado pelos leões mais novos. Para proteger o seu reinado, terá de criar muitas camadas de muros, utilizando toda a sua força, sobretudo intelectual, para barrar o inimigo.

Mas a ordem do universo é de tal modo orientada que contra o tempo nenhum rei pode lutar. A inteligência degenera em loucura e a força em impotência. O coração jovem do outro, repleto de desejo, pisa sobre as cinzas do antigo rei, para se tornar um rei cujas cinzas um dia também serão pisadas.

E assim muitos entendem que o mesmo universo que engendrou a criatura é totalmente indiferente ao desejo que ela mesma inscreveu à ferro e fogo no seu coração. E a criatura inteligente angustia-se na percepção de que sua vida foi uma paixão inútil. Um mar sem fim de Absurdo esmaga e afoga toda e qualquer esperança.

Ecce homo.            

sexta-feira, 12 de outubro de 2012

O caminho da física. Parte 2: física e sociedade

Nos dias de hoje, tenho a impressão de que a imagem do físico no Brasil ainda está associada à do cientista maluco perdido em especulações estapafúrdias que o deixam totalmente e permanentemente  desconectado da realidade que o cerca. Dessa visão estereotipada muitos concluem que esses cientistas fazem parte de uma classe de pessoas dedicadas a tarefas sem o menor impacto na sociedade e cuja existência é absolutamente dispensável. Na melhor das hipótese, a sua mais notável contribuição para história foi o desenvolvimento da famigerada bomba atômica.

Sim, sua existência é absolutamente dispensável para todo aquele que se dispusesse a voltar a viver no tempo em que todas as tecnologias baseadas na eletricidade e na mecânica industrial simplesmente não existiam. Nada de carro, roupas baratas, luz elétrica, televisão, computador, celular, eletrodomésticos etc. Alguns acham tudo isso um grande exagero e chegam a afirmar que esses avanços são apenas o resultado do esforço de homens empreendedores que  no fundo do quintal de suas casas deram à luz todos esses produtos como em um passe de mágica. Outros atribuem tudo isso apenas às forças econômicas que impulsionaram inevitavelmente todo o desenvolvimento tecnológico. Por qualquer que seja a razão, todas essas explicações não querem atribuir importância para o único fator  que teve papel decisivo: as ciências físicas, pois não existindo esse método de trabalho e investigação teria sido absolutamente impossível o desenvolvimento dessas tecnologias.

Há uma visão de mundo que tende a desprezar totalmente o papel dos indíviduos na formulação de novas tecnologias. Quem usa um computador ou um celular, ou o seu idolatrado iPhone, dificilmente parou para pensar  que tudo isso seria impossível se não fosse resultado de anos de trabalho e pesquisa de muitos físicos, químicos e engenheiros.  Há uma densidade tão grande de conhecimento e trabalho acumulado dentro de uma placa mãe de um computador que nem mesmo a cabeça do tecnólogo com a mais vasta formação científica é capaz de abarcar.  É lógico que esse trabalho precisou e sempre precisará do suporte financeiro. Mas o investimento por si só não é garantia de nada. Os verdadeiros agentes das grandes revoluções científicas e tecnológicas são os cientistas e não os empreendedores que investiram o seu dinheiro nisso.

A quantidade de tecnologias hoje consideradas indispensáveis no dia-a-dia que saíram diretamente dos laboratórios desses físicos "malucos" é tão grande que espanta que a sociedade brasileira seja incapaz de entender a importância desse profissional. Nossa sociedade tem demorado muito tempo para se dar conta da sua relevância para a economia. Em parte, isso se deve a incapacidade do ensino de física no nosso país de mostrar aos alunos o impacto da física na sociedade através de exemplos das tecnologias presentes no dia-a-dia.

A regulamentação da profissão do físico, cuja aprovação legal já está em fase avançada, é um passo que poderá ajudar a criar um ambiente favorável para esse profissional na economia do nosso país.  No entanto, é sempre bom lembrar que a lei não pode por si só criar uma cultura de prestígio ao físico nos mais diversos ramos do mercado de trabalho. Esse prestígio deve ser conquistado pelos próprios físicos, ao mostrar que seu trabalho pode fazer muita diferença. Esse reconhecimento tem sido conquistado pelos físicos em muitos ramos da atividade profissional, mas ainda falta muito para que sua importância seja amplamente reconhecida aqui no Brasil.

A dimensão do impacto que esse profissional teve nas grandes mudanças tecnológicas no último século pode ser aferida pelo trabalho dos laureados pelo prêmio Nobel. Logo na sua primeira versão, em 1901, o  alemão Wilhelm Conrad Röntgen recebeu o prêmio pela descoberta dos raios X . Quem nunca passou por uma radiografia? Em 1956, os americanos John Bardeeen, Walter Houser Bratain, Willian Bradford Shokley  receberam o premio pela descoberta do transistor e suas propriedades. Ninguem sabe o que é um transistor, é bem verdade, talvez por ser intrinsecamente complicados. Mas eles são utilizados em todos os dispositivos eletrônicos modernos, do computador, passando pela máquina de lavar, ao radinho de pilha.  Em 2009, a dupla de americanos Willar Boyle e George Smith compartilharam o prêmio pela invenção do sensor CCD (charge-coupled device), utilizado nas câmeras digitais modernas. No mesmo ano, Charles K.  Kao, nascido em Hong Kong, recebeu o prêmio pelas suas investigações que levaram ao desenvolvimento da fibra óptica. E isso tudo é apenas uma minúscula amostra das invenções tecnológicas de grande impacto que aconteceram graças ao trabalho experimental do físico.

Digo tudo isso pois já está na hora de a sociedade reconhecer uma importante vocação de muitos físicos: enfrentar os grandes problemas tecnológicos de grande relevância para o destino da sociedade. Para isso,  não é necessário destruir aquela imagem pitoresca do físico maluco e genial, unicamente envolvido em suas especulações esotéricas. Mas é desejável sim tornar presente nas mentes do grande público uma imagem que corresponda a um profissional profundamente envolvido nos problemas tecnológicos reais, palpáveis, cujos desdobramentos podem ter um impacto brutal no dia-a-dia de todos nós.    

domingo, 26 de agosto de 2012

A restauração desastrada do Ecce Homo

A notícia da restauração desastrada da pintura Ecce Homo de Elias Garcia Martinez no Santuário da Misericórdia, na Espanha tem motivos fortes para ter alcançado tão grande repercussão. Não demorou muito para que percebesse nesse acontecimento uma analogia com a falsificação da imagem do verdadeiro Cristo. Essa falsificação tem acontecido ao longo da história até os dias de hoje e tem se concretizado de inúmeras e diversas formas.

A verdadeira pintura, Ecce Homo, era realmente bonita e piedosa. Retratava a face de Cristo com traços bem definidos e harmônicos. O semblante de Jesus expressava o seu sofrimento, mas também revelava a sua bondade e mansidão. Mas a obra já se encontrava bastante deteriorada. Tudo isso que descrevi ainda podia ser contemplado apesar de o tempo ter destruído uma parcela significa da pintura.

Motivada por um zelo sincero e bem intencionado, uma senhora resolveu tomar para si a tarefa de restaurar a imagem de Cristo. E o resultado não poderia ter sido mais desastroso.

Já é possível perceber a analogia a que me refiro? Nos dias de hoje e ao longo da história, a imagem de Cristo nos é apresentada com algumas lacunas. Essas lacunas não são devidas à existência de imperfeições em Cristo, mas à existência de imperfeições nos homens que se empenharam em anunciá-Lo. De qualquer modo, apesar das imperfeições, essa imagem de Cristo é autêntica, está lá, pode ser contemplada e amada. A missão de anunciar Cristo é a missão da Igreja. Apesar das limitações dos homens, a Igreja tem sido desde sempre o lugar de encontro com o verdadeiro Cristo. A Igreja sempre anunciou o Jesus verdadeiro (Ecce Homo), ainda que hoje em dia, à semelhança do Ecce Homo anterior à malograda restauração, essa imagem do verdadeiro Cristo apresenta os sinais da deterioração do tempo. Deterioração da imagem, mas não de Cristo.

Muitas vezes nós, tantos os que nos dizemos em comunhão com a Igreja quanto os afastados dela, deliramos na fantasia de que somos capazes de restaurar a imagem de Cristo. E esse delírio consiste em restaurar a imagem de Cristo carregando-a com os nossos ideais pessoais de perfeição. E o resultado final é um desenho de Jesus segundo a nossa medida, à nossa imagem e semelhança. E o resultado não poderia ser mais desastroso. Muito mais bizarra do que o "novo" Ecce Homo.

É isso que tem feito as pessoas desenharem Cristo com os mais estranhos e estapafúrdios perfis. Alguns ainda hoje vêem Cristo como um homem desprovido de sentimentos humanos normais, como se através de sua vida tivesse ensinado uma ascese de total negação da dimensão material em favor da dimensão espiritual. Em suas diversas variantes, é essa visão que levou muitos cristãos a evitar o sorriso, supondo que Jesus nunca sorriu pelo simples fato de que os Evangelhos nunca o menciona explicitamente. Também levou alguns a evitar todo tipo de manifestação afetiva do corpo, incapazes de ver senão sensualidade imoral nelas. Outros, se recusaram a aceitar a dimensão humana, corporal, de Cristo. Ainda outros negaram a santidade do matrimônio,  incapazes de reconhecer a relação sexual entre um homem e uma mulher como uma realidade querida por Deus. E a partir desses e outros traços, a imagem que fizeram de Cristo resultou em uma pintura bastante deformada. Esse tipo de falsificação tem se manifestado claramente nas diversas doutrinas gnósticas que tem emergido ao longo do tempo, como a dos cátaros na idade média. E, de algum modo, em grande parte pela fraqueza humana, se insinua insistentemente e de forma sorrateira entre os cristãos nos dias de hoje.

Outra forma de deformação, comum nos dias de hoje, é a associação clara e quase direta de Jesus Cristo a uma ideologia política. Há alguns que pretendem apresentar a imagem de um Jesus engajado politicamente, tal qual um militante de esquerda ou um libertário. Outros, no outro extremo, querem nos fazer crer em uma imagem de Jesus que o reduz a um mero defensor dos "valores e bons costumes". E muitas vezes esses dois partidos entram em conflito entre si, colocando a imagem de Jesus no meio da briga, acreditando que o vencedor será o time que demonstrar que a imagem do autêntico Cristo se assemelha mais à própria imagem. Não parecem estar muito preocupados em seguir o exemplo de Cristo, mas em demonstrar que era Jesus quem seguia o exemplo de vida deles.

Como encontrar o verdadeiro Cristo, então? Se mostrasse a minha própria visão, provavelmente criaria a mais deformada imagem de todas. Para encontrar a Cristo, não há outra forma senão conhecer o testemunho que deixaram aqueles que conviveram com Ele e com os apóstolos. Esse testemunho está relatado nos Evangelhos.

Ainda que tal tarefa seja realmente muito difícil, uma imagem autêntica de Cristo só poderá se formar em nós se aceitarmos o relato despido dos nossos preconceitos. E isso é muito difícil, pois Cristo realmente pode ir contra a nossa visão de mundo. O olhar preconceituoso tende a filtrar tudo aquilo que se opõe às suas convicções e hábitos arraigados. O Cristo que abraça as crianças e se permite ter os pés lavados com as lágrimas de uma pecadora arrependida é simplesmente apagado do quadro dos rigoristas. O Cristo que reprova até mesmo os pensamentos maliciosos e perversos de adultério e impureza e que reafirma a indissolubilidade do matrimônio nunca existiu para o libertário. O Cristo que afirma que muitos se farão celibatários por amor ao reino dos céus é solenemente ignorado pelos que pretendem negar a autenticidade das vocações religiosas. O Cristo que ensina que não se pode servir às riquezas e a Deus simultaneamente nunca existiu para toda essa gente que faz uso seletivo e ideológico das Suas palavras para conservar e aumentar a sua riqueza. Poderia encher essa lista com muitíssimos outros exemplos, mas acho que já não é mais necessário.

Para entrar no reino dos céus é necessário se fazer tão simples como uma criança. Sim, de fato a criança é simples, pois seu olhar não está tão carregado de preconceitos e maus hábitos adquiridos. Por isso, é capaz de ver a realidade com olhos limpos e transparentes, através dos quais nada fica retido. E eu confesso: gostaria de ter os olhos limpos como o de uma criança para poder ver a autêntica imagem de Cristo.    



              



  

domingo, 29 de julho de 2012

Uma reportagem surpreendente

Acabo de ver uma reportagem surpreendente na Globo News (Especial, domingo, 29/07/12, 20h30), que mostra uma entrevista do filho do Osama Bin Laden, sozinho, e depois uma entrevista com sua esposa, também sozinha. O filho, Omar, era o mais velho, querido pelo pai, mas decidiu firmemente não seguir o mesmo estilo de vida do pai. Sua esposa, procedente de uma família judia, é vinte anos mais velha do que Omar.

Omar dá um exemplo de fidelidade ao quarto mandamento (honrará pai e mãe) sem ferir, de nenhum modo, o primeiro (amarás a Deus acima de tudo) ou o quinto (não matarás)  mandamento. Ele disse claramente que é contra o ato de terrorismo do 11 de setembro. Disse que não quis para si aquele universo em que viveu o seu pai. Mas em nenhum momento condenou o pai. Mais do que isso, diz que deve amar e respeitar o seu pai.

Essa é uma prova cabal de que cada ser humano, independentemente de sua origem e dos atos dos seus pais e das pessoas próximas que o rodeiam, pode escolher, tem livre arbítrio. A consciência é soberana. Omar passou por aqueles treinamentos. Omar amou e ainda ama o seu pai. Mas apesar disso, disse não ao que em consciência julgava errado.

Depois, o depoimento de sua esposa é ainda mais surpreendente. Ela tem coragem de falar tudo sobre a sua origem. Quando questionada pelo entrevistador se não tinha medo de falar aquelas coisas, ela responde: "não tenho medo de nada". Fiquei admirado pela coragem dela. Chegou a receber ameaças de morte dos dois lados. Lembrei-me mais uma vez daquela frase "não tenhais medo" pronunciada pelo papa João Paulo II. O medo sufoca, tira a liberdade, escraviza, oprime e deprime.

sábado, 28 de julho de 2012

Não tenhais medo: lutar contra o aborto


Recentemente tive acesso a um documento que explica extensivamente o histórico das entidades empenhadas em promover o aborto no Brasil e suas redes de financiamento. Recomendo esse documento a todos os que se posicionam corajosamente a favor da vida, pois contém todas as informações que comprovam inequivocamente que o governo brasileiro está empenhado em legalizar o aborto. Esse documento foi preparado pelo pe. Paulo Ricardo, que tem se exposto corajosamente na linha de frente das batalhas a favor da vida.

O endereço que envio a seguir direcionará para a página que contém um áudio do próprio pe Paulo Ricardo com uma explicação mais sucinta do plano do governo de burlar sorrateiramente a legislação brasileira e, ao final da página, um link para o documento a que me referi:
     
http://padrepauloricardo.org/episodios/governo-dilma-prepara-se-para-implantar-aborto-no-brasil

Tenho dois breves comentários para fazer sobre o assunto. Em primeiro lugar, espanta-me dolorosamente perceber tão claramente como os grupos promotores do aborto sabem utilizar as palavras para encobrir vergonhosamente as suas verdadeiras intenções. Outro mecanismo devastador é a sua capacidade de distorcer a linguagem de modo a conseguir acusar os seus adversários dos crimes que eles mesmos cometem. Um exemplo dessa linguagem retorcida é a seguinte frase da Norma Técnica do Atendimento Humanizado ao Aborto Provocado publicado pelo governo Lula em 2005:

"A atenção humanizada às mulheres em abortamento pressupõe o respeito ao direito da mulher de decidir sobre as questões relacionadas ao seu corpo e à sua vida. Em todo caso de abortamento, a mulher deve ser respeitada na sua liberdade, dignidade, autonomia e autoridade moral e ética para decidir, afastando-se preconceitos, estereótipos e discriminações de qualquer natureza, e evitando-se que aspectos sociais, culturais, religiosos, morais ou outros interfiram na relação com a mulher. Esta prática não é fácil, uma vez que muitos cursos de graduação e formação em serviço não têm propiciado dissociação entre os valores individuais (morais, éticos, religiosos) e a prática
profissional".

É bem verdade que a mulher tem mesmo o direito de decidir sobre as questões relacionadas ao seu corpo e à sua vida. Mas isso engloba tantas realidades, que questões relacionadas ao seu corpo e à sua vida poderiam ser, em concreto, a decisão de se suicidar ou de cometer um homicídio. Por isso, todo o direito está acompanhado de um dever. Todos temos o direito de decidir sobre questões relacionadas ao nosso corpo e à nossa vida, mas com o dever de respeitar a justiça devida a nós e aos outros. Assim como é uma falta de justiça infinita para com o próximo praticar um homicídio, o suicídio é do mesmo modo uma falta de justiça contra si mesmo (também infinita). Portanto, além de pressupor o direito de decidir, deve-se também pressupor o dever e a responsabilidade da decisão.

Não vou entrar no mérito da questão de o feto ser ou não um ser humano dotado de direitos. Mas se há dúvida sobre tal questão, então há também a possibilidade de o feto ser realmente um ser humano, e, nesse caso, o aborto é um homicídio, por definição. Veja que no documento não há nenhuma discussão sobre isso. Todo e qualquer questionamento é simplesmente taxado de preconceitos, estereótipos e discriminações de qualquer natureza. Veja que essa linguagem tira o foco daquilo que está realmente em jogo e abafa autoritariamente toda possibilidade legítima de dissensão, pois a qualifica já de antemão como uma discriminação.

Pede-se que " aspectos sociais, culturais, religiosos, morais ou outros interfiram na relação com a mulher". Essa é uma falácia que salta aos olhos a qualquer ser humano inteligente. É absolutamente impossível, em qualquer caso, que na sua relação com outro ser humano não intervenham concomitantemente aspectos sociais, culturais, religiosos, morais. A linguagem e as atitudes de um ser humano estão sempre, sem exceção, dotadas de  aspectos sociais, culturais, religiosos, morais. É absolutamente impossível destituir o ser humano desses aspectos na relação com o outro. O que se pode fazer, isso sim, e é isso o que o documento realmente pretende, é adulterar a verdadeira fisionomia social, cultural, religiosa e moral dos profissionais de saúde a fim de adequá-la às verdadeiras intenções do discurso: induzir o profissional de saúde a antepor uma legítima objeção de consciência. É verdade que o documento em questão está tratando de recomendações para a abordagem de uma paciente no pós-aborto, mas nada pode impedir o médico de alertá-la para a injustiça do ato cometido, e até repreende-la, se ele está convencido de que se trata de uma grave falta de justiça. Por outro lado, seria de fato uma injustiça da parte do médico negar-se a socorrer alguém em estado grave em decorrência de um pós aborto.        

Esse tipo de recurso linguístico é altamente sorrateiro, na medida em que pretende aniquilar convicções induzindo aquele que aceita o discurso de que a coisa mais ética a ser feita é negar as suas próprias convicções sem se dar conta de que, na verdade, as está negando.

De todas as frases que li nesse texto, a que mais me chamou à atenção foi a última, pois deixa bem claro que uma das intenções do discurso é promover "a dissociação entre os valores individuais (morais, éticos, religiosos) e a prática
profissional". Essa intenção é de uma monstruosidade alarmante. O primeiro exemplo que me veio à imaginação de um profissional desse tipo foi o de um oficial alemão, instruído em uma educação cristã, à frente de um campo de concentração.  E depois, em sua vida privada, gentil com a esposa e zeloso na educação dos filhos. Sim, esse é um exemplo bem claro de alguém que dissociou  os seus valores individuais da prática profissional. E pode ter certeza, quem faz isso, se não acaba se corrompendo, acaba enlouquecendo.


Por último, gostaria de citar uma frase que está no Evangelho, tendo sido pronunciada por Cristo e utilizada pelo papa João Paulo II no momento em que se manifestou pela primeira vez como papa. "Não tenhais medo". A principal estratégia dos homens mal intencionados é utilizar o medo para intimidar. Fazem ameaças, a fim de calar a boca dos que apontam claramente as suas injustiças para que recebam a punição que merecem. Mas não podemos ter medo, pois, na verdade, não há motivo para temer. Para isso é necessário ter a convicção de que, ainda que possam até tirar as nossas vidas, jamais vão nos fazer escravos da mentira, da injustiça e cúmplices das suas iniquidades. É preferível ser livre até a morte, se necessário, do que escravos da mentira.              




domingo, 22 de julho de 2012

Man's Search for Meaning de Viktor E. Frankl

Estou lendo um livro fabuloso, intitulado, na tradução para o português do Brasil pela editora Vozes, "Em Busca de Sentido", de Viktor E. Frankl. O título em inglês é "Man's Search for Meaning". A edição de 1984 possui três partes. A primeira é o relato da experiência do autor como prisioneiro em um campo de concentração. A segunda parte é um resumo dos fundamentos da logoterapia. A terceira parte é um apêndice intitulado a "Tese do Otimismo Trágico".

A logoterapia é um método de psicoterapia desenvolvido por Viktor E. Frankl. Ficou conhecida como terceira escola vienense de psicoterapia, depois da psicanálise de Freud e da psicologia individual de Adler. Não vou me estender mais a respeito da logoterapia; para quem se interessar, recomendo fortemente a leitura desse livro.

Transcrevo aqui uma passagem do livro em que, através de um exemplo, Viktor Frankl mostra em que medida a psicanálise de Freud pode ser mal aplicada  para resolver as angústias que decorrem de problemas existenciais.

"Quero citar um exemplo. Um diplomata americano de alto escalão dirigiu-se a meu escritório em Viena a fim de continuar o tratamento psicoanalítico iniciado cinco anos antes com um analista de Nova Iorque. Logo de início perguntei-lhe por que ele pensava que deveria ser analisado, por que, em si, começara com a análise. Revelou-se que o paciente estava descontente com sua carreira e tinha extrema dificuldade em concordar com a política exterior dos Estados Unidos. Seu analista, no entanto, lhe havia dito repetidamente que ele devia tentar reconciliar-se com seu pai, porque o governo dos Estados Unidos bem como seus superiores eram "nada mais" que imagens paternas, e, consequentemente, a insatisfação com o seu emprego se devia ao ódio inconsciente contra o pai. Uma análise que já vinha durando cinco anos induzira o paciente a aceitar cada vez mais as interpretações de seu analista, até que, de tantas árvores de símbolos e imagens, ele não mais conseguiu ver a floresta da realidade. Após algumas poucas entrevistas, ficou claro que a sua vontade de sentido estava sendo frustrada por sua profissão e que na realidade ansiava engajar-se em uma outra espécie de trabalho. Como não tinha motivo para ele não largar sua profissão e abraçar outra, assim o fez, com os mais gratificantes resultados. Em sua nova ocupação, ele está satisfeito já faz mais de cinco anos, conforme relatou há pouco tempo. Duvido que nesse caso eu estivesse lidando com um caso neurótico, e essa é a razão por que pensei que ele não precisava de qualquer psicoterapia, nem mesmo de logoterapia, pela simples razão de, ne realidade, nem ser um paciente. Nem todo conflito é necessariamente neurótico; certa dose de conflito é normal e sadia. De forma similar, o sofrimento não é sempre um fenômeno patológico; em vez de sintoma de neurose, o sofrimento pode ser perfeitamente uma realização humana, especialmente se o sofrimento emana de frustração existencial. Eu negaria categoricamente que a busca por um sentido para a existência da pessoa, ou mesmo sua dúvida a respeito, sempre provenha de alguma doença ou mesmo resulte em doença. A frustração existencial em si mesma não é patológica ou patogênica. A preocupação ou mesmo o desespero da pessoa sobre se a vida vale a pena ser vivida é uma angústia existencial, mas de forma alguma uma doença mental. É bem possível que interpretar aquela em termos desta motive um médico a soterrar o desespero existencial do seu paciente debaixo de um monte de tranquilizantes. Sua função, no entanto, é guiar o paciente através das suas crises existenciais da crescimento e desenvolvimento. "
(Viktor E. Frankl, Em Busca de Sentido, Ed Vozes, 31 Edição, p 127-128) 

quarta-feira, 4 de julho de 2012

Bulgária, o país das flores

Em um domingo entrei em uma van contratada pela organização da conferência para nos levar de Sofia para Kiten, uma pequena cidade na costa do mar negro, não muito longe de Istambul. O dia estava nublado, mas quente e abafado por causa da humidade. É verão na Europa, e na Bulgária faz calor. Não tão insuportável quanto o verão no Rio de Janeiro.

O trajeto perfaz uma estrada que corta o país de oeste a leste. O país é montanhoso, sobretudo a oeste, onde o território contém uma boa parcela das montanhas dos balcãs. Cadeias de montanhas rochosas de modesta altura se estendem de oeste a leste, até as proximidades do mar Negro. A estrada foi construída em um vale com belíssimos campos repletos de plantações de girassóis. As casas das vilas rurais nas proximidades da estrada são simples e pobres, mas bonitas. Tem flores nas janelas, hortas no quintal e parreiras para enfeitar a entrada das casas. Como são pobres, nem sempre contem revestimento externo, e, se tem, nem sempre são pintadas. Montanhas de feno fazem lembrar as pinturas européias dos séculos passados.    

Em Kiten, um novo cenário se revela. Ruas movimentadas, pequenos prédios de cores vivas, parque de diversão improvisado, crianças nadando nas piscinas dos hotéis... Logo chegamos à entrada do hotel. Era um prédio que se destacava na pequena cidade de Kiten com os seus onze andares. De aparência simples e pouco acabamento, tinha uma arquitetura peculiar. Esse hotel pertencente a universidade me fez lembrar muito as colônias de férias da Associação de Funcionários Públicos de São Paulo. Apenas dois elevadores para todo o hotel, sendo que: (i) um deles estava quebrado; (ii) dois era o limite máximo de ocupantes no elevador e (iii) um deles fazia apenas andares ímpares e o outro apenas andares pares e, finalmente (iv) cada andar tinha seis apartamentos cada um com quatro camas! Mas o hotel não estava lotado nem os apartamentos. Fiquei sozinho no meu apartamento, pois o meu suposto colega de quarto mudou-se para o quarto do seu amigo. Menos mal...

Mas esses são apenas detalhes... Pelo preço da conferência estava até barato. As refeições eram boas e o quarto tinha até uma varanda com um largo varal para estender as roupas. Bom, a comida na Bulgária também é peculiar, mas bastante adaptável ao paladar brasileiro. Há uma diversidade muito grande de saladas. A salada de pepino com tomate não faltou em nenhuma refeição, nem mesmo no café da manhã. Com acréscimo de um queijo branco ralado típico da Bulgária, vira a "salada Chopska". Também é muito comum encontrar carne grelhada, de todos os tipos.  Há que tomar certo cuidado, pois no caso de a carne não ser grelhada, pode ser gordurosa demais... Além disso, há que tomar cuidado com a quantidade inumerável de pequenos quiosques vendendo churrasco grego com batata frita. Não me arrisquei... Mas Bulgária é famosa também pelo seu Yogurt e o que experimentei de fato era bom. Fui informado de que existe uma variedade de bactéria típica da Bulgária para produzi-lo.   

As primeiras impressões que tive sobre a Bulgária foram totalmente contrariadas após algum tempo em Kiten. Ali, onde a liberdade de um novo mundo livre deixou o verdadeiro espírito do povo aflorar, entendi melhor qual era a verdadeira fisionomia do povo búlgaro. E o que vi me lembrou um pouco um mundo de brinquedo, de menina, talvez. Cores muito vivas, muitas vezes o cor de rosa na fachada das casas, flores nas varandas, aromas de óleos e cosméticos de rosa, letreiros com fontes chamativas e cores quentes, bares com decoração extravagante, poltronas ostensivas em vez de bancos nos bares e restaurantes. Depois de um tempo, tudo começa a parecer irreal, quase ilusório, doce demais. Em todo canto, a cada metro quadrado, havia um quiosque repleto de roupas extravagantes à moda antiga penduradas em cabides para a montagem de fotos envelhecidas. Tão artificial que chegava a ser repulsivo.

O povo búlgaro é bonito, mas sempre há exceções, como em todo o lugar. Encontra-se ali uma variedade muito grande de fenótipos, o que é reflexo da confluência muito grande de diferentes povos na região ao longo da história. Mas o perfil dominante é europeu, e não turco ou asiático. Não há dúvida; milagrosamente, os búlgaros sobreviveram a uma dominação do império turco-otomano de mais de 500 anos. Mas sobre isso voltarei a falar depois.

Pelo incrível que pareça, o Mar Negro não é negro. Suas águas esverdeadas são mais transparentes e limpas do que a média das nossas praias paulistanas. E, no verão, as águas são quentes, como a do Nordeste. Acho que não se fica muito longe da verdade ao imaginar a costa do Mar Negro como a Flórida da antiga União Soviética. Eu e mais dois estudantes vindos da Suécia, um de origem australiana e outro de origem tcheca, no Mar Negro. E imaginar que esses dois estudantes descendiam de homens que tinham sido prisioneiros de guerra... Não era só imaginação, era fato. Um dos avós do Australiano foi prisioneiro dos japoneses; era obrigado a andar agachado na frente dos soldados japoneses para não por em evidência sua superioridade em estatura; caso contrário, era castigado com tapas e humilhações.      

Um estudante búlgaro me surpreendeu ao me perguntar sobre a fábrica de motores elétricos WEG. Fiquei quase emocionado quando ele me falou sobre as qualidades desses motores, elogiando as soluções propostas por seus engenheiros e implorando por mais informações a respeito dessa empresa. Não pude dizer nada além de que ela ficava em algum lugar de Santa Catarina. Acho que se me tivesse perguntado sobre samba poderia ter-lhe dado mais informações. Era um sujeito um tanto quanto peculiar, simpático, levemente autista, apaixonado pela engenharia dos motores elétricos. De acordo com ele, a Bulgária já foi uma grande potência em motores elétricos. Ao comentar com ele sobre a impressão que tive ao conhecer Sofia, me fez ver as coisas com outra perspectiva mais uma vez. Aqueles prédios toscos, que tinham me transmitido uma impressão não muito agradável, teriam sido construídos, segundo ele, em um período de pós-guerra, quando a uma grande quantidade de migrantes do campo arruinados pela guerra foi dada um chance de reconstruir a  vida na cidade, trabalhando nas fábricas. De acordo com ele, embora os prédios não sejam lá essas coisas em beleza, são robustos o suficiente para aguentar os abalos sísmicos. Sua visão favorável ao regime socialista ficou clara; na sua perspectiva, durante seus 23 anos de vida testemunhou e assistiu o país cair em uma grande depressão e mediocridade. A admirável indústria de motores elétricos simplesmente acabou. Uma significativa parcela da população búlgara emigrou para fora. Sobraram muitos ciganos e turcos, que, de acordo com ele, formam uma sociedade a parte. A propriedade dos búlgaros estaria constantemente ameaçada pelos ciganos.

Ao entrar em uma rede de restaurante "fast food" espalhada por vários pontos do país fiquei pasmado com as fotos de mulheres sensuais seminuas espalhadas por todos os cantos. Acho que isso faria qualquer brasileiro médio corar de pudor. Que a mulher seja explorada como objeto em propagandas na civilização ocidental moderna não é novidade para ninguém, mas aquilo era descarado demais para aquele tipo de ambiente, onde a qualquer momento poderia entrar marido e mulher com seus filhos. Nas propagandas e nas ruas de Sofia, nota-se em alguns lugares, à plena luz do dia, um ambiente carregado desse tipo de comércio sujo.  Os guias que me foram distribuídos junto com o material da conferência mostravam, ao lado da propaganda de um restaurante, uma propaganda de baixo nível como se fosse a coisa mais normal do mundo. Em alguns lugares sente-se no ar um clima de hedonismo corrosivo e putrefaço. Suspeito que o mesmo ocorra em muitos outros lugares desse universo do leste europeu. E também deste universo tupiniquim.

No entanto, vi também muitas famílias jovens, com mais de um filho, passando suas férias em Kiten. Suspeito que o mundo sempre foi palco de grandes contrastes. A loucura do mundo moderno é pensar que pode relativizá-los. Ao entrar em uma loja que vendia ícones orientais e jóias, uma belíssima atendente que falava inglês comentou um pouco sobre o modo como encarava o cristianismo. Diferentemente de nós, católicos, as verdades de fé e a crença em Jesus Cristo Filho de Deus não são tão relevantes. O cristianismo é apenas uma atitude, uma roupagem indispensável para a composição da cultura búlgara. Alguns santos búlgaros, com os seus atos heróicos de defesa aos pobres e à pátria, poderiam ser colocados no mesmo patamar ou acima de Jesus. Enfim,  Jesus seria apenas mais um entre esses homens santos, admiráveis, dignos de simpatia e veneração. O que o meu amigo búlgaro fez ao comentar a respeito do assunto foi apenas generalizar aquela atitude particular; a sua impressão, na perspectiva de alguém que se declarou agnóstico, era a de que o cristianismo era encarado pela maior parte das pessoas na Bulgária apenas como uma roupagem, sem a menor influência em suas vidas.

Há ainda tantas outras coisas para falar, mas vou deixar para a próxima postagem... To be continued... 

 

sábado, 23 de junho de 2012

Crônica sobre um casamento em Sofia, Bulgária, junho de 2012

Em um sábado cheguei em Sofia, capital da Bulgária. O tempo que dediquei aprendendo o alfabeto cirílico valeu a pena. É verdade que ainda não consigo ler com fluência, mas se não soubesse as regras para decodificá-lo ficaria boiando o tempo todo e uma sensação de estar em outro planeta poderia atingir fatalmente meu estado de ânimo. Além disso, ganhei algo a mais ao compreender que os alfabetos na verdade foram originalmente planejados para adequadequar-se a uma língua, cada letra correspondendo exatamente ao som dos fonemas. De fato, o alfabeto latino é únivoco para o latim, e o grego para o grego, mas para tantas outras línguas, como a nossa, uma mesma sílaba pode ter diversos sons diferentes (e.g. lixo e prolixo). Esse tipo de ambiguidade muito dificilmente  acontece com essas línguas eslávicas para as quais o alfabeto cirílico foi "projetado".

De qualquer modo, muitos outros aspectos dessa cidade me fizeram ter a impressão de estar em um outro mundo. E suspeito que isso tem muito a ver com o fato de essa cidade ter pertencido a um outro universo no passado recente: o universo do mundo socialista. Mas, além de fazer algum comentários a respeito disso, não poderia deixar de expressar nesse texto minhas impressões sobre um acontecimento da vida pública e privada que testemunhei com meus próprios olhos: um casamento em uma Igreja Católica Romana. Deixarei para o leitor o trabalho de estabelecer a relação desse fato com as realidades do mundo socialista.

Assim que me instalei no hotel em Sofia, por volta das quatro horas da tarde, procurei me informar sobre a Igreja Católica de Sofia. Já sabia que havia uma lá, na região central da cidade. Na verdade, a Igreja cristã ortodoxa é maioria no país, mas há uma pequena porcentagem de católicos. Pedi ajuda à atendente do hotel e ela foi muitíssimo solícita; mesmo não sabendo onde ficava, fez uma rápida pesquisa na Internet, encontrou o endereço e me explicou como fazer para chegar lá de bonde. Parênteses: o bonde faz em Sofia o mesmo papel que o Metro faz em São Paulo, mas não imaginem que Sofia tem a mesma demanda e dinamismo que São Paulo; muito, mais muito longe mesmo está disso.      

A viagem de bonde me fez percorrer aquele cenário de pequenos prédios cinzentos, muito parecidos, modestamente dotados de beleza arquitetônica, quase todos pixados ou repletos de ilustrações proveniente da "arte" dos graviteiros. Quase todos com roupas estendidadas na varanda, mas sem o mesmo colorido e alegria de Lisboa. Alguns rapazes treinando boxe em praça pública, sem camiseta - parece ser esse um esporte muito popular no país. O calor intenso e húmido do verão lembra muito Porto Alegre na mesma época do ano. As lojinhas, mercearias, bares e restaurantes no térreo dos prédios ora dão um aspecto atrativo, ora lembram mais o comércio brega dos centros das cidades do Brasil, mas sem chegar, nem de perto, àquele nível, quase insuperável, de mau gosto. Uma ou outra construção moderna, shopping ou prédio comercial, aparece de repente, destoando do conjunto e sem oferecer nem mesmo uma beleza própria para compensar. E, de repente, uma grande construção chapada, cinzenta, larga, toda pixada com um monumento ao lado da sua imensa porta retratando uma mãe robusta e peituda com vários filhos a ela agarrados... Lembrança dos tempos "áureos" de socialismo!

Ao descer na penúltima estação (Jenski Pazar - "Mercado da mulher"), fui pedir informação a um casal de jovens que encontrei na rua. Estava seguindo a dica dada por um jovem com quem falei em inglês no bonde de que boa parte dos jovens de lá sabiam falar inglês. Disto tenho quase certeza: não deve ser muito difícil, em qualquer lugar do mundo em que se esteja, discernir dentre a multidão os jovens bem educados que provavelmente sabem falar inglês... Conseguimo-nos comunicar maravilhosamente e me explicou o melhor caminho para chegar onde queria. O rapaz era muito simpático, mas para minha decepção, e de sua namorada, perguntou-me se era verdade que as meninas do Brasil dormem de bruços para não ficar com a bunda chata. Fiz de conta que não entendi a piada, e respondi que nunca tinha ouvido tal explicação e com toda a fleuma atribui tal fenômeno à mistura afro-européia típica do Brasil. "I don't believe you have asked it", foi tudo o que disse a namorada... E tudo isso depois de dizer que estava procurando a Igreja para ir à Missa...

Muito bem, logo encontrei a Igreja, sem antes ficar bastante atordoado com o som dos sinos das seis horas, que, refletindo nas paredes dos prédios, parecia vir de todos os lados. Fenômeno físico muito interessante, 100% análogo ao fenômeno do homem que pretende confundir o seu perseguidor refletindo sua imagem em uma sala com muitos espelhos (cena típica de muitos e muitos filmes, não é verdade?). 

Aviso: nesse parágrafo, não serei irônico ou algo pior do que isso. Quando cheguei à Igreja, 17h00, um casamento tinha acabado de terminar. Era uma cena bonita, com pessoas elegantes, mas não muitas. Em um momento jogaram pétalas de flor sobre os cônjuges. Noutro reuniram-se todos para tirar uma grande foto.

Dessa vez o jovem casal que encontrei não sabia falar inglês (nota: o não, "ne", em búlgaro, é respondido com um movimento vertical da cabeça. E o sim, "da", advinhem só com que movimento é respondido...). Mas havia um placa com a tabela de horários em inglês. Para minha alegria, haveria uma Missa às 18h00! Então fiquei esperando e logo descobri que durante aquela Missa seria celebrado um outro casamento (um outro casal que sabia falar inglês me informou). Os noivos estavam do lado de fora. Um senhor americano a quem dessa vez ajudei a encontrar a informação sobre os horários da Missa não pode deixar de observar que a noiva estava bonita. E era verdade; embora a noiva não tivesse uma beleza acima do normal para um mulher, mesmo sendo alta, havia algo nela como noiva realmente belo. Pareceu-me uma noiva realmente autêntica. Seu vestido era simples, mas perfeito. Não havia uma multidão, mas aquelas pessoas que ali estavam realmente impressionavam pela elegância. Os noivos - e nós também - tiveram a sorte de contar com um excelente organista e um excelente cantor durante toda a celebração litúrgica. O jovem frei franciscano que celebrou a Missa - de casula - o fez com rigor e piedade, transmitindo paz e alegria. Cantos em latim e comunhão na boca ("Deo Gratias")! Uma senhora quis "pegar" a hóstia com a mão e foi impedida ("please wake me my Lord, I said, it must be a dream!"). Depois, ao fim da Missa, vi o confessionário sendo utilizado ("that is definitely a dream, not real world!").

A maior parte das pessoas que foram para o casamento não estavam entendendo nada do que estava acontecendo, apenas alguns poucos lá no fundo a estavam acompahando e provavelmente desses a maior parte tinha ido lá só para a Missa, como eu. Esse mesmo tipo de fenômeno é agora observado em todos os casamentos no Brasil. A diferença é que no Brasil, teoricamente, somos uma maioria de católicos. E, podemos ter certeza; transformar a Missa em um "show da Xuxa" só agrava a situação. Quem é ignorante fica mais ignorante, pois nem mesmo lhe é dada a chance de testemunhar a beleza da liturgia, e o fiel, que teve a sorte de conhecer essa beleza, acaba ficando muito frustrado. Pior para todos.

Não pude deixar de observar que as moças usavam uns penteados sofisticados muito bonitos e estavam muito elegantes, sem apelar para a sensualidade. Ao contrário do Brasil, parece que a maioria na Bulgária tem o mínimo de 'semancol' para escolher um vestido apropriado para um casamento, sem que isso diminua em nada a sua elegância (na verdade, a maiorira no Brasil tem esse "semancol", mas há umas poucas que acabam fazendo a má fama de todas). E, para ser bem sincero, elas ficam bem mais elegantes do que as que não tem "semancol". Outra coisa que não me passou despercebida foi a riqueza das fragrâncias dos perfurmes. Nunca senti algo igual antes; perfumes muito agradáveis, que não despertam a sensualidade, não são enjoativos e no entanto não se parecem com os perfurmes "para senhoras mais velhas". Como disse, nunca senti nem mesmo algo semelhante antes.        

Enfim, saí daquele pedaço de sonho, para voltar à realidade do mundo cão. E não deixei de observar alguns cães na rua, alguns grandes, que me fizeram lembrar daquelas numerosas matilhas uspianas de cachorro. Então passou pela minha cabeça que, se me perguntassem como é Sofia, por analogia, responderia: "conheces as residências universitárias das Universidades Públicas do Brasil, como o CRUSP (USP) ou a residência da Unicamp? Imagine que elas fossem uma cidade inteira; o resultado seria então uma cidade de um país socialista. Acrescenta aí algumas belas construções anteriores ao mundo socialista (Igrejas, óperas, palácios) e algum lixo descartável do mundo capitalista atual (shoppings) e você terá uma cidade como Sofia."

Por isso, me pergunto: qual é a verdadeira fonte para uma cultura capaz de desenvolver toda a potencialidade de cada ser humano? Não tenho dúvida que boa parte dos homens que construíram aquelas residências no mundo comunista o fizeram com idealismo, desejosos de ver todos desfrutando de uma moradia de qualidade. Mas o melhor que conseguiram fazer, e não por sua culpa, foi um "huge" CRUSP. Por quê?

sexta-feira, 8 de junho de 2012

"Why I am a Christian" de Henry Margenau

Esse texto, Henry Margenau, um físico que participou dos avanços da física no começo do século XX, entitulado "Why I am a Christian", contem muitos fatos interessantes. Não o divulgo por proselitismo, mas pelo interesse histórico. Até os 22 anos ele não entendia nada de física; apenas de latim. Não é por nada que Gleb Wataghin lamentou o fim do latim nas escolas. Entre muitos fatos interessantes que divulga, está o testemunho de Heisenberg, que deliberadamente impediu o desenvolvimento da bomba atômica na Alemanha. E podem ter certeza, os alemães naquela época eram melhores em física do que os americanos; eles teriam conseguido se os melhores físicos quisessem.
Vale à pena ler esse texto.
http://www.leaderu.com/truth/1truth16.html

domingo, 29 de abril de 2012

O Caminho da Física. Parte I


Costuma-se dizer que a física é uma ciência fundamentada sobre o princípio da indução. Em poucas palavras, isso significa que todas as suas conclusões universalmente válidas são formuladas depois de um número finito de experimentos que sempre conduzem aos mesmos resultados. Desse modo, afirmações universalmente válidas, como por exemplo, "não havendo obstáculos, todo objeto abandonado por um observador na terra executa uma trajetória de queda", ou, "sempre que uma corrente elétrica flui por um fio condutor, um campo magnético pode ser medido nas imediações do fio", são verdadeiras porque sempre que se realizou o experimento, o mesmo efeito se observou. Essas afirmações não garantem que os efeitos enunciados se cumprirão necessariamente em um próximo experimento, pois a conclusão indutiva sempre se baseia em um número finito de experimentos anteriores.

No entanto, alguém poderia imaginar que a física deveria também ter exemplos de conclusões fundamentadas no princípio da dedução. Einstein criou uma teoria postulando que a velocidade da luz é constante e que as leis da física são as mesmas qualquer que seja o referencial inercial no qual um observador realize um experimento. A partir desses postulados, chega-se à conclusão de que o espaço e o tempo são necessariamente relativos.

Antes de Einstein ter chegado à essa conclusão, nunca nenhum observador tinha percebido que o tempo e o espaço dependem do referencial. Além disso, Einstein alegou que tinha desconhecimento dos experimentos de sua época que não identificaram diferenças na velocidade da luz ao ser medida em diferentes referenciais. Apesar disso, depois da sua formulação, nunca foi obtido nenhum resultado experimental inconsistente com as conclusões da teoria da relatividade restrita.

Isso significa então que a física quebrou o paradigma do processo indutivo como método único para chegar às suas conclusões? Sim, mas é necessário entender que foram necessárias muitas conclusões fundamentadas em processos indutivos para que tenha chegado a essa possibilidade. Isso porque a teoria de Einstein pressupõe a existência de leis físicas, postuladas invariantes pela sua teoria. Em particular, a teoria de Einstein se refere às leis expressas pelas equações de Maxwell. Essas equações se estabeleceram na física como a ferramenta que descreve de maneira mais simples e completa as observações experimentais envolvendo campos elétricos e magnéticos, correntes elétricas e carga elétrica. Foram obtidas a partir de um processo indutivo, isto é, sua única justificativa é experimental, não havendo nenhuma dedução partindo de algum enunciado mais geral a partir da qual elas tenham sido deduzidas.          

Já se sabia antes de Einstein que as equações de Maxwell só poderiam ser invariantes com relação ao referencial se o espaço e o tempo fossem relativos. Einstein postulou sem provar a invariância das leis da física e aceitou a relatividade do espaço e do tempo que decorrem como conclusão lógica de seus postulados. Se não havia nenhuma evidência experimental a respeito da relatividade do espaço e do tempo, o que deu segurança para Einstein estabelecer aqueles postulados?

Einstein fez uma escolha -- que talvez alguns possam considerar arbitrária e subjetiva -- fundamentada em uma expectativa de que a natureza deve ser de um modo e não de outro. E essa expectativa é a de que deve existir uma lógica ou ordem intrínseca à propria natureza. Se as leis variassem de acordo com o referencial, então simplesmente deixariam de ser leis universais. Não haveria apenas uma lei, mas muitas leis, uma para cada referencial. Em outras palavras, Einstein preferiu preservar a existência das leis universais à imutabilidade do espaço e do tempo. E, ao que tudo indica, nenhum experimento foi capaz de contestar as conclusões decorrentes da sua escolha.

Infelizmente, até hoje muitos utilizam a teoria de Einstein para justificar o enunciado "tudo é relativo" em contextos estranhos à física. Em primeiro lugar, a teoria da relatividade não postula e nem chega à conclusão de que "tudo é relativo". Pelo contrário, postula que a velocidade da luz e as leis da física são absolutas e não relativas e que portanto nem tudo é relativo. Sem querer entrar no mérito da questão relativa à aplicação do enunciado "tudo é relativo" em outros contextos, como a ética, pode-se dizer com toda a certeza que utilizar a teoria da relatividade para justificar esse enunciado nesse contexto é uma falácia grosseira.

domingo, 1 de abril de 2012

O argumento moral a favor da existência de Deus de William Lane Craig

Alguém já ouviu falar em William Lane Craig? É um filósofo que ficou conhecido do grande público pelo excelente desempenho como apologista da fé em debates com ateus e agnósticos. Costuma deixar os seus adversários sem respostas para os seus argumentos. Christopher Hitchens amargou uma desastrosa derrota em debate com ele promovido pela Biola University em 4 de abril de 2009. Dawkins se recusa a debater com ele, alegando que "o que poderia ser excelente para o seu CV, talvez não seja tão bom para o meu" (ref http://www.guardian.co.uk/commentisfree/2011/oct/20/richard-dawkins-william-lane-craig). E ao contrário do que se costuma imaginar a respeito de apologistas, sabe expor seus argumentos de maneira clara e perfeitamente lógica, sem deixar transparecer nenhum sinal das paixões pessoais ou fazer uso de argumentos sentimentalistas e fideístas.

Sua estratégia é utilizar um enfoque filosófico-analítico para as questões em debate. Esse enfoque é muito simples e extremamente eficaz. Consiste em apresentar os argumentos a favor do seu ponto de vista expondo claramente todas as premissas de modo que a conclusão deriva delas como necessidade lógica. Então convida o oponente a rebater as suas conclusões através da invalidação das premissas. Dessa forma, a defesa fica concentrada nas premissas, pois se as premissas permanecerem intactas, então a conclusão permanece irrefutada.

Os argumentos que William Craig utiliza são bem conhecidos, pois estão todos completamente expostos em seu site http://www.reasonablefaith.org. Mesmo assim, ainda não vi nenhum oponente que tenha sido capaz de invalidar uma de suas premissas. Em vez disso, costumam expor os argumentos a favor do seu ponto de vista, geralmente sem a mesma clareza e objetividade. E, ainda assim, não vi nenhum caso em que William Craig tenha se saído mal na refutação dos argumentos contrários. Tampouco o vi perder a calma e a serenidade no decorrer do debate, o que não ocorreu nos casos de Hitchens e Stephen Law. A transcrição dos debates mostra claramente isso, pois nota-se claramente como os seus oponentes vão perdendo a capacidade de concatenar coerentemente as suas idéias.

Ao ver dois de seus debates, cuja questão em discussão era "Does God exist?" (Deus existe?), um com Stephen Law e outro com Christopher Hitchens, chamou-me a atenção um dos argumentos que ele apresentou para defender racionalmente a resposta afirmativa. É um argumento moral, que pode ser resumido no seguinte silogismo:

1. Se Deus não existe, valores morais objetivos não existem.
2. O mal existe.
3. Portanto, valores morais objetivos existem.
4. Portanto, Deus existe.

Esse argumento é tão eficaz pois toca no senso moral que existe em nós e que precisa necessarimente ser abandonado para que as premissas possam ser refutadas. Então vamos lá, analisemos cada uma das premissas.

Primeira premissa: de fato, se Deus não existe, como podemos afirmar que valores morais objetivos existem? Com base em que critério pode-se afirmar a existência de valores morais objetivos? Muito bem, quando falamos em valores morais objetivos estamos dizendo que existem atos humanos objetivamente maus e atos humanos objetivamente bons. Mas como então determinar quais atos são bons e quais são maus se Deus não existe? Se estabeleço que o critério de objetividade sou eu, então tenho que explicar por que o meu critério é objetivo e o do outro que julga diferente não é. Esse argumento não se sustenta, pois seria necessário um terceiro juízo para discernir a objetividade entre opiniões opostas. Se esse terceiro juízo não é absoluto, então a objetividade desse juízo também poderia ser questionada. Também é possível estabelecer como critério o consenso social. Isso também é difícil de sustentar, pois é preciso provar que o consenso social sempre é objetivo. Outra possibilidade é estabelecer como critério a natureza biológica humana, isto é, aqueles atos que correspondem aos costumes naturais e instintivos do homem, assim como corresponde à natureza dos cachorros e lobos viverem em matilha e dos tigres viverem sozinhos. Mas primeiro é necessário identificar qual é essa natureza. Isso é impossível, pois uma das diferenças dos homens com relação aos animais é não ter todas as suas ações condicionadas pela sua natureza biológica. Há quem acredite nisso, mas então forçosamente terá que  negar o livre-arbítrio, pois todas as suas ações estariam condicionadas pela sua natureza biológica, e além disso explicar como atos contrapostos podem ter a mesma origem biológica.

Se alguém tem algum outro argumento para refutar a primeira premissa, ficaria muito contente de conhecê-lo. Vamos então para a segunda premissa. Negar essa premissa é o que há de mais comprometedor em todo o argumento. Dizer que o mal não existe impede que qualquer ateu utilize o tão frequente argumento de que havendo tanto mal no universo então é pouco plausível que Deus exista. Pois negando a existência do mal, então não pode dizer que há mal no universo. A grande "sacada" desse argumento é mostrar que o mal pesa mais a favor do que contra a existência de Deus. Mas negar que o mal existe é comprometedor por outros motivos. Por exemplo, o que autorizaria então um ateu afirmar que as ações dos nazistas foram más? O que autorizaria um ateu a afirmar que um crime hediondo - por favor, imaginem o crime que quiserem, não vou dar exemplos - é um mal?

Uma possível saída desse problema consiste em afirmar que aquelas ações são más na medida em que põe em risco a minha própria segurança, ainda que não sejam más em sentido objetivo. Especificando mais, podem dizer que se uma pessoa fere a outra, autoriza então que outras façam o mesmo com ela. Como não quer ser ferida, então é preferível não ferir a outra. Essa atitude é bem representada pela regra de ouro, que ensina "a agir com os outros do mesmo modo como gostaria que os outros agissem comigo". Mas para um ateu que nega a objetividade do mal, esse princípio está baseado apenas na necessidade pessoal de salvaguardar a própria segurança. Mas basta propor uma situação em que uma atitude má - matar, por exemplo - não colocaria em risco a própria segurança. Por exemplo, alguém poderia ser esperto o suficiente para construir uma sociedade em torno de si que lhe daria segurança e ao mesmo tempo lhe daria apoio para cometer qualquer crime que desejasse contra outras. Era por exemplo o que faziam muitas tribos nômades no passado. Viviam em grande número, muito bem armadas e soltas pelas terras ermas. Estavam seguras portanto. Ao mesmo tempo, sobreviviam do saque e da destruição das sociedades sedentárias. Para essas sociedades nômades era errado matar, estuprar e saquear? Não. Se essa tribo nômade encontrasse um grupo de pessoas indefesas trabalhando no campo, o princípio da garantia da segurança própria poderia ter algum efeito sobre a decisão desses nômades? Não, pois aniquilar essas pessoas não diminui a sua segurança. Diria até que aumenta sua segurança, pois quanto mais fracos e amedrontados estiverem os povos sedentários, maior será a sua dificuldade para fazer frente às suas invasões.

Agora, sendo você ateu, imagine-se na posição de líder desses nômades. Imagine também que em uma certa ocasião você e seu grupo encontram em lugar isolado uma única pessoa portando um diamante extremamente valioso disposta a defendê-lo até a morte, mesmo sabendo que será facilmente derrotada. Nessa situação, qualquer ateu coerente com os seus próprios princípios não encontraria outra solução a não ser matar o sujeito. Por que não o faria? Em primeiro lugar, realizando esse ato, não coloca em risco sua segurança. Se não o realiza, sabe que provavelmente outro de seu grupo o fará e talvez queira apenas para si o diamante. Isso poderia gerar disputas, colocando em risco a unidade do grupo e a sua autoridade. Do ponto de vista da segurança pessoal, o melhor nesse caso é unir todos para a conquista do diamante e depois dividir os bens do espólio de acordo com o código do grupo.

Esse exemplo é apenas ilustrativo. Poderia tratar-se também de um grupo de cavaleiros templários do tempo das cruzadas que se encontram na mesma situação. Quis apenas mostrar que há situações em que uma escolha objetivamente má é a melhor escolha do ponto de vista da segurança pessoal e dos próprios interesses. Agora, convido-o a responder a seguinte questão: quem tem a maior chance de respeitar a vida e propriedade daquele sujeito, um homem que não acredita na objetividade do valor de seus atos, ou um homem que acredita, e que além disso sabe que seus atos estão sujeitos ao julgamento e à condenação por parte de Deus?

Todo esse raciocínio tinha como objetivo mostrar como é extremamente comprometedor negar a objetividade dos valores morais. Há ainda outros argumentos muito fortes para mostrar isso. Por exemplo, com que autoridade alguém que nega a objetividade dos valores morais poderia condenar a atitude dos nazistas? Afinal de contas, eles não estavam agindo de acordo com os seus próprios valores? Como posso julgá-los e até condená-los à morte com base nos meus valores? Se o faço, o faço pois acredito que os meus valores são melhores do que os deles. Mas se eles não tinham os meus valores, qual é o fundamento da sua culpabilidade? Por outro lado, se admito a objetividade dos valores morais, então o seu julgamento é possível, pois existe uma base de valores objetivos que poderia ser reconhecido pelos nazistas e que torna culpável as suas atitudes, pois tinham a possibilidade de reconhecer a maldade de seus atos. Portanto, se não existe mal objetivo, tampouco existe culpabilidade e qualquer julgamento é inviável. Apenas na condição de existência do mal objetivo, um julgamento é viável.

Enfim, para concluir, digo que o que faz forte o argumento moral de William Lane Craig não é a sua irrefutabilidade, mas o mal estar profundo que qualquer refutação às suas premissas necessariamente provoca.

domingo, 18 de março de 2012

A banda Trupe Chá de Boldo e seu novo CD "Nave Manha"

Estive na sexta-feira (16/03/12) no show de estréia do segundo CD  da banda Trupe Chá de Boldo “Nave Manha” no Sesc Vila Mariana. Nunca tinha escutado nem sequer uma única música da banda, mas motivado pela amizade de muitos anos com o baterista, Pedro, quis conhecer ao vivo e pela primeira vez a música da Trupe. Se você nunca ouviu falar na “Trupe Chá de Boldo” então o melhor é escutá-los para tirar as próprias conclusões (em um um movimento de grande generosidade, a Trupe disponibilizou para download o seu último CD no site oficial www.trupechadeboldo.com). Mas se já os conhece, então essa apreciação poderá encontrar alguma ressonância na composição de impressões pessoais do leitor.   

Penso que perguntar qual é o estilo de uma banda está entre as perguntas mais naturais e espontâneas a se fazer sobre uma banda desconhecida. No caso da Trupe, não é fácil encontrar uma resposta simples, pois penso que ainda não há um estilo dentro da imensa categoria de classificações que a define perfeitamente. Arrisco a dizer que apenas as bandas medíocres podem ser bem definidas por uma dessas categorias. Bandas de verdade tem um estilo e personalidade próprias, isto é, são únicas pois encerram completamente em si mesmas o seu próprio estilo. Mas a Trupe não está nem aí para que estilo a define. Por aproximação, o melhor que podemos fazer é tentar assimilar e depois expressar da melhor forma possível as suas influências.

E de fato é a essa pergunta que a própria Trupe responde  na música “Splix”, lançada em seu novo CD, provavelmente em resposta geral a essa indagação tão frequente e tão frequentemente irritante. Mas tenho que admitir que permaneci boa parte do show tentando assimilar os estilos ali impressos e as suas possíveis influências. A sua fonte de influência mais direta é a vanguarda paulistana, que tem como representantes nomes e grupos como Rumo, Itamar Assumpção e Arrigo Barnabé. Mas há ali também elementos que fazem lembrar Mutantes, Gilberto Gil, Tom Zé, Novos Baianos, Caetano Veloso, Arnaldo Antunes, Lenine e Ney Matogrosso.  Percebe-se no seu estilo aquela mesma desvinculação proposta pelo tropicalismo dos moldes canônicos de música brasileira.

Graças à presença de uma formação diversificada a banda é capaz de transitar facilmente por vários estilos e compor influências mais contemporâneas, como o Reggae e o Ska, com estilos brasileiros tradicionais, como o Samba e o Frevo.  E penso que é precisamente isso o que faz a Trupe uma banda especial. Precisamente, a possibilidade unida à competência para compor muitos estilos diferentes. De fato é muito raro encontrar uma banda  que já nasce com metais, percussão e backing vocals femininos afinadíssimos, além da composição básica guitarra-baixo-bateria. É uma banda que já nasceu com essa potencialidade gigantesca de compor diversas tonalidades musicais em um mesmo quadro. E, na minha opinião, souberam aproveitar essa possibilidade para expressar musicalmente com precisão as idéias presentes nas letras.

Todas as músicas servem de exemplo para o que acabei de dizer, mas apenas para tornar concreto o mais abstrato utilizo o exemplo da música “Verão”, em que toda musicalidade ali presente remete ao calor e às cores do ambiente da praia e, é claro, a um estilo tão facilmente associável ao mar como o Samba-Reaggae. De fato, a sensibilidade artística de quem montou a iluminação do show o conduziu naturalmente a adotar composições de cores quentes, como o vermelho e o amarelo. Da mesma forma, na música de abertura, “No escuro ”, a letra que remete a realidades tipicamente paulistanas está acompanhada de ritmos próprios da música de fundo dessa grande cidade cosmopolita, como o Samba-Jazz e o Rock.

Além dessas características, afirmo que atualmente a Trupe é uma banda de forte pegada rítmica. Para falar de modo mais simples, é uma banda que faz música para movimentar e dançar, embora não esteja muito seguro se existe de fato uma intenção explícita do grupo. Mas o resultado prático das suas músicas é esse. Foi engraçado assistir ao show em um teatro de cadeiras fixas quando o desejo do público era levantar e dançar! A inibição só foi totalmente vencida no bis, conquistado depois de muita insistência do público, quando todos preferiram ficar de pé em vez de voltar a sentar...

Agora arrisco-me a discutir uma pergunta mais ousada: a Trupe chegará um dia a conquistar o sucesso do grande público? De modo geral, a receita do sucesso envolve a capacidade de compor melodia facilmente assimilável com harmonia e ritmo envolvente, e uma letra capaz de produzir uma ressonância quase universal nas mentes tão díspares do grande público. Mas é evidente que a Trupe não é banda de seguir receitas de sucesso.

Como quase toda manifestação artística em seu estágio embrionário, é uma banda que dialoga com um grupo bem particular pertencente ao seu círculo de influência. Para o grande sucesso, o grau de universalidade exigido é a capacidade de tocar tipos tão díspares como um evangélico e um ateu contumaz, um pedreiro e um cientista, um “pós-hippie“ contestador e um conservador “careta”, uma criança e um velho. Se ela alcançar essa façanha, e acho que há boas chances de conseguir, pergunto-me com que música seria. Pagaria para ver. Outra façanha é  manter uma banda tão grande por um bom período de tempo, e espero que dessa ela seja capaz...

Sem dúvida, o perfil de uma banda se delineia ao longo de sua história para alcançar o seu ápice em um estágio posterior, assim como a personalidade só revela a sua verdadeira potencialidade na conquista da maturidade. Mas nem todos chegam à maturidade...  Nem todas as pessoas nem todas as bandas. O que da minha parte posso dizer é que desejo continuar escutando as coisas novas que essa criatura tem para falar ao mundo por muitos anos. Então, ao final, teremos um idéia completa do que ela realmente falou ao mundo.

Na música “Splix”, o refrão diz que “a música é só uma onda, curta”. Não tenho nada contra curtir, mas é bom ter claro que a música é muito mais do que o som e portanto mais do que uma onda. Na melhor das hipóteses, “o som é só uma onda” é apenas uma definição física imprecisa facilmente assimilável mas pouco aceitável para nós físicos... E para nós físicos os corpos também são onda, mas, certamente, assim como a música, o ser humano é muito mais do que uma “onda-corpo”.

sábado, 10 de março de 2012

Crônica sobre uma cadela prenhe abandonada

Há algum tempo atrás em um lugar qualquer deste mundo testemunhei a compaixão despertada em algumas pessoas por uma cadela prenhe abandonada que apareceu naquele lugar. Ela estava magra e seus olhos se dirigiam aos seres humanos que se aproximavam implorando-lhes ajuda. Na verdade, e penso que isto não surpreenderá ninguém, essas pessoas que se sentiram particularmente sensibilizadas pela situação da cachorra eram do sexo feminino. Perguntei-me por que e parei para pensar um pouco sobre o assunto.

Na verdade, também senti-me condoído pela situação daquela cadela. Mas foi uma outra pessoa que me chamou a atenção para a existência daquele ser; se não fosse por isso, teria passado por ele como se fosse mais um cachorro vira-latas qualquer. De alguma forma, a situação daquele ser remete à tragédia da situação do ser humano no mundo. Quem tem sensibilidade, ao ver a situação de penúria daquela criatura, pensa consigo mesmo: "essa criatura precisa de ajuda, precisa de cuidados, pois caso contrário vai continuar sofrendo até perecer; devo agir para evitar o cumprimento desse destino trágico". De fato, a natureza não tem compaixão; é absolutamente inclemente com os fracos e doentes. O ser humano, por alguma força misteriosa, não se conforma com essa situação e é capaz de perceber que tem poder para mudar aquela primeira realidade, cuidando de quem é fraco e doente para que venha a ser forte e saudável. É capaz de ver e admirar a vida escondida naquilo que aparentemente é moribundo. Embora muitas vezes esquecido e desconhecido, um dos dons mais nobres e únicos do ser humano é a sua capacidade de cuidar e curar. 

Mas quando me refiro ao ser humano, não posso generalizar a existência dessa qualidade em mesmo grau em todas as pessoas em particular. A história está repleta de muitos exemplos de pessoas e sociedades que construíram ideologias e mitos para justificar o extermínio daqueles que por sua fragilidade necessitavam de cuidados. Muitas sociedades antigas sacrificavam as crianças nascidas com deficiência física e mental; os nazistas empregaram meios de extermínio em massa para eliminar os deficientes mentais e os idosos de idade muito avançada. São apenas alguns exemplos dentro de um universo infelizmente muito maior.

Mas não pensemos que essa realidade pertence apenas ao passado. Tudo isso continua acontecendo hoje e pode se agravar, pois ainda são poucos os que são capazes de perceber o que está ocorrendo em nossos dias e menos ainda os que se arriscam a denunciá-lo. Assim como foram poucas as que perceberam a situação daquela cadela e menos ainda, talvez ninguém, tenham tido coragem de adotá-la. Prefiro não dizer quais são os meios de extermínio em massa dos dias atuais; qualquer pessoa bem informada já tem todos os dados para chegar às mesmas conclusões.

Aquela cadela estava dotada por natureza de uma simplicidade irresistível, pois não teve "vergonha" da sua situação e todo o seu ser adotou uma postura do tipo "por favor cuida de mim!" que muitas vezes vemos nas crianças e nos enche de afeição e compaixão. Mas também me lembro de que em outro lugar do mundo em algum tempo perdido não muito distantes destes presenciei a mesma situação, não com uma cadela, mas com uma moradora de rua. O ser humano é muito diferente de um cachorro. Dizem que quando um cachorro abandonado é adotado permanece eternamente e incondicionalmente fiel e grato à família que o adotou. O ser humano não reage necessariamente assim. Ele pede e precisa de muito mais cuidado do que um cachorro. Ele dá muito, mas muito mais trabalho, pois exige demais. E, para a surpresa de muitas pessoas, não é verdade que tantas e tantas vezes o ser humano interpreta o acolhimento como uma humilhação e retribui a generosidade com uma violência brutal?  

Se certamente já foi difícil encontrar uma alma generosa para acolher aquela cadela, quanto mais difícil não será encontrar uma alma generosa para acolher um ser humano na mesma situação. A situação é tão mais exigente, que é necessário encontrar pessoas que estejam dispostas a dedicar sua vida a isso, sabendo ainda que estão se arriscando a receber socos como retribuição por um abraço. Essas pessoas existem, para grande perplexidade do mundo. E digo que essas pessoas existem porque foram despertadas pelos ensinamentos vitais produzidos pela voz doce da mãe mais bela, carinhosa e acolhedora que já existiu: a Igreja. Os fatos atuais e do passado atestam que isso é verdade; negá-lo é simplesmente dizer uma mentira. Antes da Igreja, isso não existia. Sem a Igreja, não existirá. O Estado a substituirá? O Estado não é capaz de amar nem de ser amado; não é capaz de curar nem de cuidar. Esse "Estado" é quando muito uma abstração inerte para suprimir a responsabilidade pessoal que não queremos assumir.

Nada pode causar mais remorso do que a consciência de ter ferido a própria mãe, a não ser que essa consciência já esteja irreversivelmente embrutecida. Creio que algum dia todos nós enxergaremos claramente a pureza da beleza e da bondade dessa mãe e para muitos o remorso será eternamente fatal.