sábado, 10 de março de 2012

Crônica sobre uma cadela prenhe abandonada

Há algum tempo atrás em um lugar qualquer deste mundo testemunhei a compaixão despertada em algumas pessoas por uma cadela prenhe abandonada que apareceu naquele lugar. Ela estava magra e seus olhos se dirigiam aos seres humanos que se aproximavam implorando-lhes ajuda. Na verdade, e penso que isto não surpreenderá ninguém, essas pessoas que se sentiram particularmente sensibilizadas pela situação da cachorra eram do sexo feminino. Perguntei-me por que e parei para pensar um pouco sobre o assunto.

Na verdade, também senti-me condoído pela situação daquela cadela. Mas foi uma outra pessoa que me chamou a atenção para a existência daquele ser; se não fosse por isso, teria passado por ele como se fosse mais um cachorro vira-latas qualquer. De alguma forma, a situação daquele ser remete à tragédia da situação do ser humano no mundo. Quem tem sensibilidade, ao ver a situação de penúria daquela criatura, pensa consigo mesmo: "essa criatura precisa de ajuda, precisa de cuidados, pois caso contrário vai continuar sofrendo até perecer; devo agir para evitar o cumprimento desse destino trágico". De fato, a natureza não tem compaixão; é absolutamente inclemente com os fracos e doentes. O ser humano, por alguma força misteriosa, não se conforma com essa situação e é capaz de perceber que tem poder para mudar aquela primeira realidade, cuidando de quem é fraco e doente para que venha a ser forte e saudável. É capaz de ver e admirar a vida escondida naquilo que aparentemente é moribundo. Embora muitas vezes esquecido e desconhecido, um dos dons mais nobres e únicos do ser humano é a sua capacidade de cuidar e curar. 

Mas quando me refiro ao ser humano, não posso generalizar a existência dessa qualidade em mesmo grau em todas as pessoas em particular. A história está repleta de muitos exemplos de pessoas e sociedades que construíram ideologias e mitos para justificar o extermínio daqueles que por sua fragilidade necessitavam de cuidados. Muitas sociedades antigas sacrificavam as crianças nascidas com deficiência física e mental; os nazistas empregaram meios de extermínio em massa para eliminar os deficientes mentais e os idosos de idade muito avançada. São apenas alguns exemplos dentro de um universo infelizmente muito maior.

Mas não pensemos que essa realidade pertence apenas ao passado. Tudo isso continua acontecendo hoje e pode se agravar, pois ainda são poucos os que são capazes de perceber o que está ocorrendo em nossos dias e menos ainda os que se arriscam a denunciá-lo. Assim como foram poucas as que perceberam a situação daquela cadela e menos ainda, talvez ninguém, tenham tido coragem de adotá-la. Prefiro não dizer quais são os meios de extermínio em massa dos dias atuais; qualquer pessoa bem informada já tem todos os dados para chegar às mesmas conclusões.

Aquela cadela estava dotada por natureza de uma simplicidade irresistível, pois não teve "vergonha" da sua situação e todo o seu ser adotou uma postura do tipo "por favor cuida de mim!" que muitas vezes vemos nas crianças e nos enche de afeição e compaixão. Mas também me lembro de que em outro lugar do mundo em algum tempo perdido não muito distantes destes presenciei a mesma situação, não com uma cadela, mas com uma moradora de rua. O ser humano é muito diferente de um cachorro. Dizem que quando um cachorro abandonado é adotado permanece eternamente e incondicionalmente fiel e grato à família que o adotou. O ser humano não reage necessariamente assim. Ele pede e precisa de muito mais cuidado do que um cachorro. Ele dá muito, mas muito mais trabalho, pois exige demais. E, para a surpresa de muitas pessoas, não é verdade que tantas e tantas vezes o ser humano interpreta o acolhimento como uma humilhação e retribui a generosidade com uma violência brutal?  

Se certamente já foi difícil encontrar uma alma generosa para acolher aquela cadela, quanto mais difícil não será encontrar uma alma generosa para acolher um ser humano na mesma situação. A situação é tão mais exigente, que é necessário encontrar pessoas que estejam dispostas a dedicar sua vida a isso, sabendo ainda que estão se arriscando a receber socos como retribuição por um abraço. Essas pessoas existem, para grande perplexidade do mundo. E digo que essas pessoas existem porque foram despertadas pelos ensinamentos vitais produzidos pela voz doce da mãe mais bela, carinhosa e acolhedora que já existiu: a Igreja. Os fatos atuais e do passado atestam que isso é verdade; negá-lo é simplesmente dizer uma mentira. Antes da Igreja, isso não existia. Sem a Igreja, não existirá. O Estado a substituirá? O Estado não é capaz de amar nem de ser amado; não é capaz de curar nem de cuidar. Esse "Estado" é quando muito uma abstração inerte para suprimir a responsabilidade pessoal que não queremos assumir.

Nada pode causar mais remorso do que a consciência de ter ferido a própria mãe, a não ser que essa consciência já esteja irreversivelmente embrutecida. Creio que algum dia todos nós enxergaremos claramente a pureza da beleza e da bondade dessa mãe e para muitos o remorso será eternamente fatal.

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