sexta-feira, 2 de março de 2012

Comentário sobre o artigo "O fio de cabelo de uma mulher" de Luiz Felipe Pondé

No artigo de Luiz Felipe Pondé "O fio de cabelo de uma mulher", publicado no caderno ilustrada da folha em 27/02/2012, é citada a seguinte frase de Nelson Rodrigues:


A prostituta é a primeira e a mais sublime vocação de toda mulher.  (extraído de sua coluna de 5 de maio de 1967 no "Correio da Manhã")

Nelson Rodrigues não escreveu apenas que a prostituta é uma vocação da mulher; escreveu também que é a primeira e a mais sublime vocação de toda mulher. Leitor, paraste para pensar nessa frase, buscando a sua correspondência com essa parcela da realidade que viveste? Sendo sincero consigo mesmo, a que conclusão chegas? Te sentiste incomodado? Por quê?

 Senti-me incomodado por que tive que admitir a verdade a respeito da nossa natureza humana ao confrontar a ideia com os fatos. Não conheço na pele a realidade de ser mulher, mas como homem posso afirmar que a promessa de uma vida repleta de prazeres realizados de fato em experiências sexuais com muitas mulheres sedutoras é extremamente atraente. E se além disso pudesse tirar daí a minha subsistência, melhor ainda!  

No mundo arcaico, em que o ser humano lutava desesperadamente pela subsistência com "o suor do seu rosto" (Gn 3, 19), o homem, pela sua condição física, estava em situação de vantagem com relação à mulher para extrair os frutos de uma terra indômita. A mulher, consciente da sedução que exerce sobre o homem, percebe que é capaz de utilizá-la para os seus fins. Algumas vezes esse fim é atrair um homem para ser um parceiro definitivo mas outras vezes é atrair muitos homens. Com um parceiro definitivo, a mulher encontra um apoio para a sua subsistência e dos filhos, ao mesmo tempo que pode oferecer um apoio afetivo e laboral ao homem. Nesse caso, a sedução é exercida em toda sua graça e intensidade apenas no momento do encontro com aquele que será o seu futuro marido. Mas, na verdade, esse prazer de seduzir não passa depois que o fim foi alcançado e o desejo de revivê-lo também acontece nessa fase em que a sedução já não se faz necessária.

Não seria melhor viver uma vida de exercício contínuo de sedução, muito mais prazerosa? Creio que no mundo antigo isso não era possível sem que a mulher exigisse do seduzido um pagamento, pelas razões já mencionadas. Por isso, surgiu a prostituição. No mundo novo, não é assim necessariamente, pois a mulher pode conseguir a sua subsistência sozinha, e ainda sobra muito tempo livre nos finais de semana para seduzir a quem bem entender. Não é prostituição; o nome que damos a isso é promiscuidade.

Portanto, a prostituição e a promiscuidade tem origens em comum, embora não sejam equivalentes (no pequeno artigo http://www.adhominem.com.br/2012/03/promiscuidade-e-equivalente.html Joel P. da Fonseca mostra a diferença, para além das diferenças de definições). Nesse sentido, é verdade que há em toda mulher uma prostituta ou uma promíscua em potencial. E o mesmo vale para o homem, digamos de passagem. Mas ainda me pergunto: por que essa é a primeira vocação e a mais sublime? Dizer que é a primeira vocação tem força ontológica. Equivale a dizer que é uma parte constitutiva da sua natureza. Dizer que é a mais sublime tem valor subjetivo. É um valor atribuído por alguém, isto é, por aquele que julga ser essa a vocação mais sublime. Nelson Rodrigues falava sério? Que conhecimento ele tinha da essência da mulher? Em que posição ele se encontrava para julgar categoricamente aquela a mais sublime das vocações? Na posição de Deus?

Depois de ter vivido uma vida repleta de resultados bem sucedidos produzidos pela sedução, ao crepúsculo da vida a capacidade de seduzir morre antes do corpo. Aquela "vocação" já não pode ser realizada. É o fim. Não resta a esse indivíduo mais do que aceitar a sua situação e esperar pacientemente a morte, consolando-se talvez na lembrança dos seus tempos áureos. Sabemos bem que ninguém reage desse modo; tenta desesperadamente prolongar os sinais da juventude. E quando a última pétala cai, e toda a flor já está murcha, fica o sabor amargo de uma vida totalmente abandonada. Por que ninguém mais a quer? Tínhamos a impressão de que aquela vida se doou a tantos, oferecendo-lhes prazer, "cheia de amor para dar"? Onde estão aquelas pessoas para agradecer o amor e o prazer recebido? Por que não voltam agora, para retribuir amor com amor? Por que não querem encontrar aquela "Marie, linda, cozinhando sua comida, de vestido solto e listrado, enchendo a sua vida de desejo, com os cabelos caindo nos ombros".

Albert Camus não parece ser muito fiel à realidade em sua obra "O Estrangeiro". Passa a ideia de que a mãe,  aquela que dá a vida e a primeira e verdadeira experiência do amor ao filho, é infeliz, pois acaba sofrendo a indiferença do próprio filho. A mulher sedutora, por outro lado, é feliz, "cheia de amor para dar", "enchendo a sua vida de desejo", verdadeiramente querida por Meursault. Apesar de que muitas vezes a mãe seja esquecida pelos filhos na sua velhice, e  de que algumas vezes não seja querida por eles, a experiência mostra no entanto que as Maries são as grandes esquecidas da história. São sempre esquecidas, sem exceção. Acabam sozinhas e sem ninguém que as ame. Ninguém. Diga-se de passagem que existe muito em comum entre a mãe e a Marie. Pois algum dia a mãe foi a Marie e a Marie poderá ser a mãe. Também é bom lembrar que nem todos os filhos são Meursault. E que Meursault tem uma consciência, além das paixões.

Não quero com isso menosprezar ou condenar a graça que uma mulher como Marie quer oferecer ao homem. Pelo contrário, reconheço nessa graça a experiência de prazer mais intensa que um homem pode experimentar. É utilizada nas Sagradas Escrituras em analogia à felicidade eterna. Mas então o que há de errado na vida da prostituta e da mulher promíscua? "És pó, e pó te hás de tornar" (Gn 3, 19). Não faz diferença, quando toda morte conduz a um fim definitivo. Essa é mesmo a resposta definitiva?

Um mortal não pode dizer a outro qual é a sua verdadeira vocação. É uma pretensão ridícula. As palavras são insuficientes para expressar experiências vitais. Elas não tem peso nenhum se não fazem referência a experiência vitais já experimentadas. "Sua religião não vale um fio de cabelo de uma mulher". Essas palavras são intensamente verdadeiras na perspectiva de Meursault. Ele prefere o encanto real, concreto e paupável de uma mulher à religião. Ele não encontra nenhum valor na religião, pois de imediato ela não é capaz de lhe oferecer nada comparável ao que experimentou com Marie. Mas Meursault fica na superfície dos fatos, pois deveria também se perguntar por que Marie?, por que esse prazer?, por que ela?, por que eu?.        

Quem poderá juntar as peças desse grande quebra-cabeças? E quem se sentirá à vontade para desistir de encontrar a imagem completa? Afinal de contas quanto  realmente vale o fio de cabelo de uma mulher? E quanto vale o fio de cabelo de um homem?  

Um comentário:

  1. Na primeira postagem desse artigo afirmei que a a prostituição e a promiscuidade são essencialmente iguais. Joel P. da Fonseca observou que essa afirmação não é verdadeira. Concordo com o argumento apresentado em seu artigo http://www.adhominem.com.br/2012/03/promiscuidade-e-equivalente.html e recomendo a sua leitura. Modifiquei o texto postado pela primeira vez. Afirmo apenas que prostituição e promiscuidade tem origens em comum. Aliás, essa é a única conclusão lógica que se pode tirar do raciocínio apresentado.

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