sábado, 27 de outubro de 2012

O Coração das Trevas


Na sua sede por domínio, o ser humano é capaz de destruir todo obstáculo que obstrua suas paixões, contanto que tenha força para isso. Na maior parte dos casos, esse obstáculo é uma outra pessoa. Não conseguindo uma solução de compromisso entre a vontade própria e alheia, a destruição do rival aparece como a única solução para a conquista.

E desse modo, na luta incessante contra os outros, o indivíduo vai conquistando território e formando o seu reinado, isso se não for aniquilado no processo. Mas o custo do seu reinado é um passado de ruínas. Há também um custo atual, que é o estado de permanente tensão em virtude da ameaça exterior ao território conquistado. E há também a certeza do envelhecimento e da morte, certa tanto para os que dominam quanto para os que são dominados.

O custo do passado em ruínas é muito mais alto do que parece, pois ele cobra esvaziando o significado do presente e corroendo o conteúdo ontológico da pessoa até reduzi-la irreversivelmente ao nada. Essa realidade emblemática da vida está magistralmente exempĺificada, de modo simbólico, na trajetória de Bastian em Fantasia, narrado em A História Sem Fim de Michael Ende.

Para passar essa idéia do plano abstrato para o concreto e ajudar a compreensão do seu conteúdo, não vejo outro modo de fazer que não seja por meio do exemplo. A trajetória de Bastian ilustra bem esse idéia, mas nem todos leram o livro e, além disso, o caráter alegórico da estória traz outras dificuldades. O exemplo que proponho é bem banal, o de um indivíduo que foi desleal com o seu melhor amigo, e perdeu-o, infiel à esposa, e divorciou-se, injusto com o seu irmão de sangue e negligente com os pais, e desvinculou-se da própria família. Foi desleal com o amigo, mas com isso conseguiu um posto alto na empresa; infiel à esposa, mas vinculou-se a uma mulher bem mais jovem; injusto com o irmão, mas adquiriu uma herança vantajosa; negligente com os pais, mas dispôs de mais tempo para cuidar de seus negócios.

No final da vida, ao olhar para trás, perceberá que deixou um rastro violento de destruição. Já não sabe mais quem realmente é, pois não há ninguém ao seu lado para recordá-lo. Aqueles que o conheceram e o amaram foram aniquilados.

Essa realidade existencial tem inúmeros exemplos na literatura e na história. A loucura de Nabucodonosor é um exemplo emblemático. As aparentes causas da loucura - o álcool, a sífilis etc - são sinais materiais da ruína existencial. Um outro exemplo brilhante da literatura é o desfecho da vida de Mr Kurtz na novela de Joseph Conrad O Coração das Trevas. Tendo se tornado rei em uma tribo no coração da selva do Congo, por meio do uso irrestrito da violência, Mr Kurtz adquire o poder que desejava para captar quantidades enormes de ébano e remetê-las para uma Companhia européia. A estória é narrada em primeira pessoa por Marlow, o aventureiro encarregado pela Companhia de encontrar o Mr Kurtz, sobre quem havia rumores de que estaria doente. A tarefa termina em êxito, mas Mr Kurtz é encontrado doente, louco, dominado por uma feiticeira tribal, habitando uma tenda cercada por estacas com cabeças humanas espetadas nas pontas. Mr Kurtz acaba convalescendo miseravelmente na presença de Marlow.

Joseph Conrad viveu na mesma época que Nietzsche e ambos captaram, de modo distinto, a pretensão de poder do colonizador europeu do século XIX. Mr Kurtz é o superhomem de Nietzsche. Mas a estória não acaba aí: Mr Kurtz tinha uma grande admiradora, uma mulher que realmente o amava, e que tinha ficado na Europa. O nosso aventureiro a encontra, quando volta para a Europa, e descobre que a mulher o via como o homem mais doce e puro sobre a face da terra. Não que o amor seja cego, pelo contrário, mas a trajetória devastadora a que a sede de poder o impulsionou reduziu-o ao nada e o conduziu ao coração das trevas.  

Mas o desejo de reinar pulsa no coração humano. Se, por um lado, a disputa é evitada, não há conquista, e o indivíduo se frustra, pois não alcança o seu desejo, e ainda é visto como covarde pelos outros. Se, por outro lado, entra na disputa, pode ferir e destruir, deixando atrás de si um rastro de destruição, ou ser aniquilado. Eis um grande paradoxo da existência humana.        


domingo, 21 de outubro de 2012

O desejo régio

Cada ser humano nasce com o desejo de reinar. Deseja no mais íntimo do seu ser desfrutar de um mundo totalmente submetido à sua vontade. Gostaria de ter sob sua posse única e exclusiva todos os recursos da terra. Não descansa enquanto não conseguir construir para si um castelo provido de todos os produtos de sua imaginação. Quer conservar sob total controle seu parceiro sexual e sua prole.

Se tantos obstáculos não se impusessem a esse impulso do coração humano, ninguém conheceria o sofrimento. O principal obstáculo é esse mesmo desejo presente nos outros. O outro é o maior obstáculo à vontade própria. Se o indivíduo deseja para si uma propriedade territorial, uma pessoa ou outro bem, terá sempre que competir com outros caso esse bem seja escasso. Não é preciso dizer que essa competição será tanto mais feroz quanto maior for a demanda e menor a oferta do bem desejado.

Na luta pelo bem desejado, tão grande é a sede imposta pela vontade, que pela sua conquista o indivíduo arrisca a própria vida e ameaça a do outro no combate.

Essa realidade está presente também entre muitas espécies animais. O leão, na procura por sua parceira, se encontra outro leão na posse de harém e prole, travará combate, e, se ganhar, ficará com o harém e matará a prole do antecessor.

Entre os seres humanos, acontece o mesmo. Mas, dotado de consciência e inteligência, é capaz de entender a própria condição. Essa capacidade lhe dá a possibilidade de adotar novas estratégias ou até mesmo de se recusar a entrar na disputa.

Mas ainda assim enfrenta um novo sofrimento: se recusar a disputa, não terá o prêmio, e se frustrará. Se, por outro lado, já tem para si um reino, ele estará sempre ameaçado pelos leões mais novos. Para proteger o seu reinado, terá de criar muitas camadas de muros, utilizando toda a sua força, sobretudo intelectual, para barrar o inimigo.

Mas a ordem do universo é de tal modo orientada que contra o tempo nenhum rei pode lutar. A inteligência degenera em loucura e a força em impotência. O coração jovem do outro, repleto de desejo, pisa sobre as cinzas do antigo rei, para se tornar um rei cujas cinzas um dia também serão pisadas.

E assim muitos entendem que o mesmo universo que engendrou a criatura é totalmente indiferente ao desejo que ela mesma inscreveu à ferro e fogo no seu coração. E a criatura inteligente angustia-se na percepção de que sua vida foi uma paixão inútil. Um mar sem fim de Absurdo esmaga e afoga toda e qualquer esperança.

Ecce homo.            

sexta-feira, 12 de outubro de 2012

O caminho da física. Parte 2: física e sociedade

Nos dias de hoje, tenho a impressão de que a imagem do físico no Brasil ainda está associada à do cientista maluco perdido em especulações estapafúrdias que o deixam totalmente e permanentemente  desconectado da realidade que o cerca. Dessa visão estereotipada muitos concluem que esses cientistas fazem parte de uma classe de pessoas dedicadas a tarefas sem o menor impacto na sociedade e cuja existência é absolutamente dispensável. Na melhor das hipótese, a sua mais notável contribuição para história foi o desenvolvimento da famigerada bomba atômica.

Sim, sua existência é absolutamente dispensável para todo aquele que se dispusesse a voltar a viver no tempo em que todas as tecnologias baseadas na eletricidade e na mecânica industrial simplesmente não existiam. Nada de carro, roupas baratas, luz elétrica, televisão, computador, celular, eletrodomésticos etc. Alguns acham tudo isso um grande exagero e chegam a afirmar que esses avanços são apenas o resultado do esforço de homens empreendedores que  no fundo do quintal de suas casas deram à luz todos esses produtos como em um passe de mágica. Outros atribuem tudo isso apenas às forças econômicas que impulsionaram inevitavelmente todo o desenvolvimento tecnológico. Por qualquer que seja a razão, todas essas explicações não querem atribuir importância para o único fator  que teve papel decisivo: as ciências físicas, pois não existindo esse método de trabalho e investigação teria sido absolutamente impossível o desenvolvimento dessas tecnologias.

Há uma visão de mundo que tende a desprezar totalmente o papel dos indíviduos na formulação de novas tecnologias. Quem usa um computador ou um celular, ou o seu idolatrado iPhone, dificilmente parou para pensar  que tudo isso seria impossível se não fosse resultado de anos de trabalho e pesquisa de muitos físicos, químicos e engenheiros.  Há uma densidade tão grande de conhecimento e trabalho acumulado dentro de uma placa mãe de um computador que nem mesmo a cabeça do tecnólogo com a mais vasta formação científica é capaz de abarcar.  É lógico que esse trabalho precisou e sempre precisará do suporte financeiro. Mas o investimento por si só não é garantia de nada. Os verdadeiros agentes das grandes revoluções científicas e tecnológicas são os cientistas e não os empreendedores que investiram o seu dinheiro nisso.

A quantidade de tecnologias hoje consideradas indispensáveis no dia-a-dia que saíram diretamente dos laboratórios desses físicos "malucos" é tão grande que espanta que a sociedade brasileira seja incapaz de entender a importância desse profissional. Nossa sociedade tem demorado muito tempo para se dar conta da sua relevância para a economia. Em parte, isso se deve a incapacidade do ensino de física no nosso país de mostrar aos alunos o impacto da física na sociedade através de exemplos das tecnologias presentes no dia-a-dia.

A regulamentação da profissão do físico, cuja aprovação legal já está em fase avançada, é um passo que poderá ajudar a criar um ambiente favorável para esse profissional na economia do nosso país.  No entanto, é sempre bom lembrar que a lei não pode por si só criar uma cultura de prestígio ao físico nos mais diversos ramos do mercado de trabalho. Esse prestígio deve ser conquistado pelos próprios físicos, ao mostrar que seu trabalho pode fazer muita diferença. Esse reconhecimento tem sido conquistado pelos físicos em muitos ramos da atividade profissional, mas ainda falta muito para que sua importância seja amplamente reconhecida aqui no Brasil.

A dimensão do impacto que esse profissional teve nas grandes mudanças tecnológicas no último século pode ser aferida pelo trabalho dos laureados pelo prêmio Nobel. Logo na sua primeira versão, em 1901, o  alemão Wilhelm Conrad Röntgen recebeu o prêmio pela descoberta dos raios X . Quem nunca passou por uma radiografia? Em 1956, os americanos John Bardeeen, Walter Houser Bratain, Willian Bradford Shokley  receberam o premio pela descoberta do transistor e suas propriedades. Ninguem sabe o que é um transistor, é bem verdade, talvez por ser intrinsecamente complicados. Mas eles são utilizados em todos os dispositivos eletrônicos modernos, do computador, passando pela máquina de lavar, ao radinho de pilha.  Em 2009, a dupla de americanos Willar Boyle e George Smith compartilharam o prêmio pela invenção do sensor CCD (charge-coupled device), utilizado nas câmeras digitais modernas. No mesmo ano, Charles K.  Kao, nascido em Hong Kong, recebeu o prêmio pelas suas investigações que levaram ao desenvolvimento da fibra óptica. E isso tudo é apenas uma minúscula amostra das invenções tecnológicas de grande impacto que aconteceram graças ao trabalho experimental do físico.

Digo tudo isso pois já está na hora de a sociedade reconhecer uma importante vocação de muitos físicos: enfrentar os grandes problemas tecnológicos de grande relevância para o destino da sociedade. Para isso,  não é necessário destruir aquela imagem pitoresca do físico maluco e genial, unicamente envolvido em suas especulações esotéricas. Mas é desejável sim tornar presente nas mentes do grande público uma imagem que corresponda a um profissional profundamente envolvido nos problemas tecnológicos reais, palpáveis, cujos desdobramentos podem ter um impacto brutal no dia-a-dia de todos nós.