segunda-feira, 17 de abril de 2017

Fake news na ciência: o caso Bohannon

A grande mídia frequentemente veicula opiniões em favor da ciência contra o obscurantismo ameaçador produzido por fantasmas que ela mesmo inventa para rotular seus inimigos. Na realidade, a dinâmica da ciência é muito complexa de modo que pouquíssimos jornalistas estão realmente habilitados para analisar a qualidade e a credibilidade de resultados científicos.

Prova disso foi o famoso estudo fabricado pelo biólogo e jornalista científico John Bohannon em 2013 sobre os efeitos da dieta baseada em chocolate amargo. Sua idéia foi fabricar um estudo enviesado que corroborasse a tese frequentemente difundida por gurus da nutrição de que chocolate amargo faz bem para saúde. Com isso, ele queria verificar a extensão da difusão dos resultados pela mídia e testar a eficácia dos mecanismos de verificação de fatos e versões.

Com um pequeno orçamento à sua disposição, Bohannon conseguiu alguns voluntários para sua pesquisa. Com uma pequena amostra de quinze pessoas, 11 mulheres e 4 homens, três grupos de cinco pessoas foram formados; a um dos grupos foi dada a instrução de seguir uma dieta de baixo nível de carboídrato; ao segundo grupo foi dada a mesma diretiva mas com o acréscimo de 42 g de chocolate amargo na dieta diária; ao terceiro grupo, chamado controle, não foi dada nenhuma instrução quanto à dieta.

Todos os participantes tiveram que responder antes de iniciar o programa a um questionário para verificar se as dietas não poderiam lhes ser prejudiciais à saúde. O tempo de duração da dieta seria de 21 dias, durante os quais os participantes teriam que se pesar todos os dias ao menos uma vez, inclusive os do grupo controle. Ao término desse período, os participantes fizeram alguns exames de sangue e responderam a um novo questionário, perguntando, por exemplo, sobre a qualidade do sono durante a realização do programa.

Com a assistência de um estatístico conhecido seu, Bohannon estabeleceu uma metodologia calibrada para produzir falsos positivos. De acordo com essa metodologia, um total de 18 variáveis foram testadas, entre elas o peso ao final do programa, velocidade de perda de peso, qualidade do sono, bem estar, concentração de colesterol e sódio no sangue etc. Chegaram à conclusão de que o grupo da dieta com chocolate amargo perdeu peso a uma velocidade 10% maior. Além de essa diferença ter sido estatisticamente significativa, este grupo também apresentou menores níveis de colesterol e relatou maiores níveis de bem-estar.

Esses resultados caíram como uma luva em um contexto do jornalismo em que notícias sobre fatos nutricionais dão imensa audiência. Bohannon contou com a ajuda de uma jornalista para produzir uma matéria simplificada e pictórica do estudo, que acabou sendo utilizada como fonte primária dos jornais e agência de notícias que passaram a difundir os resultados. Muitos acreditaram no estudo e me lembro que na época ele chegou a ser difundido no Brasil.

Mas por que o resultado de Bohannon não merece credibilidade? De fato, o que pode ser afirmado é que com grande probabilidade o estudo dele produziu um falso positivo, afinal de contas, seu método foi desenhado para aumentar a chance de produzi-lo. Como foram testadas muitas variáveis em uma amostra pequena, existia uma probabilidade não desprezível de que uma variação aleatória produzisse diferenças estatisticamente significativas. Sempre que médias de certos parâmetros - como o peso e nível de colesterol - de grupos distintos são comparadas, é necessário estabelecer um certo nível de significância em testes de hipótese. Tipicamente, o nível de significância adotado é de 5%, ou seja, existe uma chance em 20 de que um determinado teste resulte em falso positivo. Como foram realizados 18 testes no total, já que foram estabelecidos 18 parâmetros, a chance de obter um falso positivo pode ser calculada em 60%. O próprio Bohannon disse que tiveram sorte de que o provável falso positivo tenha ocorrido em parâmetros de maior relevância, como a velocidade da perda de peso.

Se Bohannon não tivesse admitido a farsa, certamente cedo ou tarde a comunidade científica teria percebido o engodo. Mas este processo é lento, deixando tempo suficiente para que resultados mirabolantes sejam difundidos pela grande mídia. Durante a fase de maior divulgação dos resultados pela grande mídia, Bohannon foi contatado por grandes agências de notícias, e também pelos seus investigadores. No entanto, a verificação limitava-se a assegurar a existência de Bohannon, ou de que era ele mesmo quem estava respondendo às perguntas. Não houve nenhum esforço de fazer uma revisão mais profunda do estudo ou de consulta aos pares. 

Portanto, nós temos todo o direito e dever de questionar e duvidar das afirmações da grande mídia. O próprio Bohannon reconhece que foi possível enxergar alguma luz de esperança ao ler os comentários críticos e bem fundamentados de leitores dos sites em que os resultados fabricados foram anunciados.

Não é sem razão que muitos acusam a grande mídia de produzir "fake news". Se neste caso se verificou tamanha displicência e preguiça, o que esperar da cobertura sobre política e economia, por exemplo? Há muito tempo que guardo fortes reservas quanto às opiniões veiculadas na grande mídia em geral. Muitas vezes verifico facilmente a tendenciosidade que beira à pura militância mal disfarçada. Haveria ainda muito mais a afirmar sobre os maus hábitos da grande mídia. Por enquanto me limito a comemorar a sua gradual perda de influência e credibilidade, esperançoso de que algum dia todos estejam vacinados contra os seus vícios. 



sábado, 8 de abril de 2017

Um alquimista no Acre

Ontem, fiquei sabendo por meio de um telejornal sobre o desaparecimento de um jovem de 24 anos de idade, no estado do Acre. Dentre os muitos desaparecimentos que ocorrem por ano no Brasil, o que surpreende nesse são as circunstâncias bastante peculiares. Bruno Borges, o desaparecido, transformou seu quarto em um livro aberto, tendo ilustrado as paredes, teto e chão com diagramas e códigos, além de alguns quadros com símbolos e figuras misteriosas e uma reprodução fac-símile da estátua de Giordano Bruno. Sobre a mesa, foram deixados 14 volumes de sua obra, todos em escrita criptografada.

Os pais não sabem do paradeiro do filho e demonstram consternação e sofrimento pelo ocorrido. Ao mesmo tempo, dão um testemunho positivo a respeito de seu comportamento ao longo da vida, por meio de muitos bons exemplos. Além disso, tratam com respeito e admiração a obra do filho, e acham que ela merece receber atenção e ser conhecida por estarem seguros de que contém uma mensagem boa e talvez nova para a humanidade.

Tem circulado nas redes sociais vídeos e opiniões sobre o assunto. O interesse de muitos foi despertado e, se o desaparecimento foi desejado por Bruno para chamar a atenção para a sua obra, certamente ele a conseguiu.

Diante dessa situação, é possível fazer muitas perguntas, entre elas, podemos destacar: há alguma mensagem nova nesses escritos?

Não será possível responder essa pergunta sem antes ler os livros. Mesmo assim, podemos partir da análise de uma página decriptografada para chegar a algumas conclusões. A análise dos símbolos e pinturas merece uma análise à parte, que talvez tratemos em um post futuro.

Reproduzo abaixo o texto decriptografado:


"Caminho difícil

Por milhares de anos o ser humano vem tentando encontrar respostas para perguntas como 'qual o sentido da vida'? A filosofia que, ao que tudo indica, parece ter se iniciado com Tales de Mileto em meados de 700 a.C. visa encontrar vestígios de perguntas sem respostas. A pesquisa profunda pela verdade absoluta advém da filosofia, e quando falamos a respeito de caminhos fáceis ou difíceis estamos nos referindo a esse tipo de teorema.

É fácil aceitar o que desde criança te ensinaram que é errado. Difícil é, quando adulto, entender que te ensinaram errado o que desde criança você suspeitou que fosse correto. Em outras palavras, se você se enquadra em algum cujos estímulos do meio lhe determinaram certo comportamento, fazendo com que estivesse à mercê de crenças já providas e bem estabelecidas em dogmas e rituais, com uma massa concentrada de pessoas nela; ou permitindo-o ficar no conformismo, aceitando o conceito de felicidade e de sentido da vida embutido pela mídia e pela sociedade, então claramente você faz parte do caminho fácil para a busca da verdade absoluta.

Acaso se enquadre na segunda opção, ou seja, aquele que suspeitava de todo conjunto de crenças que lhe foi enraizado, então este tem tudo para ser um investigador da veracidade nas coisas ao seu redor, entrando em um caminho mais complicado, no qual uma minoria se arrisca ou enfrenta com bravura."

Este texto parece ser introdutório e por esse mesmo motivo ajuda a compreender um pouco do sentido e objetivos do que vem a seguir (que nós ainda desconhecemos). Pelo título, "Caminho difícil", podemos entender o sentido do todo, como veremos a seguir. Qual é o caminho difícil a que o autor se refere?

No primeiro parágrafo, o autor afirma que convem à filosofia buscar a resposta para as questões mais fundamentais, como por exemplo, 'qual o sentido da vida?'. Isto é algo consensual, embora haja um enorme debate a respeito da possibilidade da filosofia, com seus métodos, ser capaz de dar uma resposta para elas. Há também hoje em dia um enorme debate, que divide opiniões, sobre o conceito de verdade ou verdade absoluta. Em todo caso, parece que o autor acredita na existência de uma verdade, isto é, uma resposta verdadeira para as perguntas da filosofia, embora o caminho para obtê-las seja difícil. A frase "quando falamos a respeito de caminhos fáceis ou difíceis estamos nos referindo a esse tipo de teorema" é obscura, pois filosofia não é um teorema, e o texto em nenhum momento fez referência a um teorema na acepção rigorosa da palavra, que se aplica ao campo da matemática apenas.

No segundo parágrafo, o autor manifesta sua opinião de que nos são dados ensinamentos errados na infância em oposição à intuição sobre a verdade nas crianças. O autor não dá nenhum exemplo aqui. Menciona também as respostas oferecidas pela sociedade e sobre os que se conformam e os que não se conformam com elas. Na opinião do autor, apenas uma minoria vai buscar suas próprias respostas, entre as quais ele se inclui. 
 
No último parágrafo, o autor instiga a desconfiança a respeito de tudo o que foi ensinado, para que seja empreendida uma investigação pessoal a respeito da veracidade das coisas, caminho que ele considera ser mais complicado.

De fato, parece-me mesmo possível fazer a distinção entre pessoas que apenas desistem quando estão convencidas com a resposta para um questão que formularam em seu interior e aquelas que estão propensas a aceitar uma resposta mesmo que não a convença completamente. No entanto, nós podemos estar ora no primeiro grupo ora no segundo. Pode ser que alguém seja indiferente à pergunta 'qual o sentido da vida?', aceitando qualquer resposta, sem ir à fundo na sua investigação, mas talvez não fiquem tão desinteressados quanto à pergunta 'qual a causa de minha doença e qual seu diagnóstico?', e queiram chegar à resposta verdadeira para obter a cura de seu mal.  O autor parece delimitar aqui a busca por respostas às perguntas fundamentais, tais como 'qual o sentido da vida?'.

De fato, vários pensadores se debruçaram sobre essas questões, desde a antiguidade. Há várias respostas para elas. Ficaremos sabendo quais as respostas a que Bruno chegou  e como elas se assemelham com a dos pensadores antigos após conhecermos todo o conteúdo de seus livros. Encontraremos alguma novidade?

Frequentemente, na história das religiões, surgem grupos que consideram possuir os conhecimentos necessários para a plena realização espiritual. Outro traço distintivo é o princípio de que tais conhecimentos devem ter uma dimensão esotérica, isto é, devem ser revelados, geralmente em etapas, apenas para indivíduos cuidadosamente selecionados, não sendo acessível ao grande público. Muitos grupos deste tipo ainda existem. Alguns autores (e.g. Réne Guénon) sustentam a tese de que até mesmo as religiões tradicionais, como o Cristianismo e Islamismo, tem ou tiveram uma dimensão esotérica e que ela seria necessária para a sustentação da dimensão exotérica, isto é, a dimensão dos ensinamentos e ritos destinados às massas.

A idéia de que a plena realização espiritual só é possível por meio de um empreendimento pessoal de busca do conhecimento está na raiz do que ficou conhecido como gnosticismo. Essa tendência vai na contra mão dos ensinamentos das religiões tradicionais. No cristianismo, por exemplo, a fonte da salvação é a Graça, um dom de Deus, que é capaz de atuar independentemente do empreendimento pessoal em busca de uma verdade transcendente. A própria história narrada no Novo Testamento comprova que o Messias não estabeleceu escolas iniciáticas e sistemas esotéricos, mas antes enviou o Espírito Santo para que abrisse a mente dos discípulos à compreensão de verdades transcendentes. Se São Tomás de Aquino chegou a compreender muito bem verdades filosóficas com o uso da sua razão natural, jamais poderia ter chegado a conhecer verdades mais elevadas sem a Luz do Espírito Santo.

O gnosticismo e as religiões mistéricas são tão antigas que hoje é difícil pensar que seria possível propor alguma doutrina nova. A Igreja desaconselha esse caminho, pois, com razão, identifica claramente os perigos.

Se alguém deseja entender a mensagem que o Bruno deixou, é aconselhável estar ciente sobre a profunda diferença que existe entre a busca de um Alquimista (gnóstico) e de um Santo. Ao passo que o Alquimista busca em conhecimentos ocultos e sistemas esotéricos respostas para os grandes mistérios, o Santo as busca na fonte de todos os conhecimentos, Deus. Será Bruno um Santo ou um Alquimista?