quinta-feira, 30 de março de 2017

Seria a Física um Arbitrário Cultural?

Recentemente me deparei com um trabalho intitulado "A Física como uma construção cultural arbitrária: Um exemplo da controvérsia sobre o status ontológico das forças inerciais", publicado na Revista Brasileira de Educação em Ciências (link no final). O artigo procura argumentar a favor da tese de que a física é uma construção cultural arbitrária. 

O conceito de arbitrário cultural foi extraído do trabalho do sociólogo Pierre Bordieu. Arbitrário aqui não tem o significado de aleatório. Está mais próximo do exercício de um juiz em um jogo de futebol, isto é, o exercício do juízo com base em um código mediado ou criado pela cultura.

Neste sentido da palavra, a ciência tem algo de arbitrário. Assim como um juiz se baseia em uma regra, a ciência também tem suas próprias regras para arbitrar. Mas essas regras não são exclusivamente culturais, pois é necessário que haja um elemento transcendente à cultura na metodologia científica. Sem este elemento, não há como conectar ciência com realidade. Realidade, por sua vez, não pode ser arbitrada e não é um arbitrário cultural.

Voltamos ao exemplo do jogo de futebol. O fato a ser arbitrado não é arbitrário. Dois juízes apenas podem discordar nos seguintes casos, a saber: fatos mal entendidos; fatos sem punição prevista; desvios simultâneos e intensidade da punição. Mas concordam quanto à regra. E concordam quanto à existência de apenas um entendimento possível e válido do fato. Por exemplo: se o bandeirinha diz que um jogador pois a mão na bola, o juiz vai querer saber quem foi, quando e onde. Se o outro bandeirinha disser que não houve mão na bola, então o juiz não poderá aceitar as duas versões como sendo interpretações igualmente válidas do fato. Uma delas é verdadeira. O fato é único.

Os cientistas precisam acreditar na existência da realidade objetiva e da ordem subjacente ao seu objeto de estudo. Se não fosse assim, o empreendimento científico não teria razão de ser, pois se os fenômenos físicos não tivessem uma ordem intrínseca, seria inútil e infrutífera a busca por ela. 
Agora, se de fato não existisse tal ordem, o cientista teria que se limitar apenas ao arbítrio ou mera escolha em suas teorias. Mas que formulação teórica arbitrária de uma ordem imaginada seria capaz de realizar previsões acertadas a respeito de uma ordem ontologicamente inexistente?

Portanto, a ciência e a física em particular não é um arbitrário cultural, embora possa ter elementos arbitrários em suas teorias. Tais elementos podem deixar de ser arbitrários. Consideremos o seguinte exemplo.

A ciência acumulou uma quantidade enorme de evidências indiretas quanto à existência de átomos. Nos seus estágios mais primordiais, a hipótese atômica ainda tinha um caráter arbitrário. Mas hoje os efeitos físicos em escala atômica detectados pelos microscópios de força atômica não deixam dúvida quanto à realidade objetiva do modelo atômico. Trata-se de evidência direta.

O arbítrio quanto à realidade do modelo atômico deixou de ser "cultural" para ser "factual".

Os elementos da cultura de uma civilização sem dúvida desempenham um papel importante na ciência. No entanto, reduzir a ciência e sua metodologia ao conceito de arbitrário cultural é inaceitável.

Caso fosse aceitável, seríamos obrigados a reconhecer que a teoria atômica só prevaleceu por causa do grito de seus proponentes. Mas a história da ciência jamais poderia ser lida nessa óptica sem com isso desrespeitar a veracidade dos acontecimentos. A teoria atômica teve muitos oponentes. No entanto, o número de evidências experimentais era tão grande, tão vasta, que muitos deles foram convencidos pela força dos fatos e não da cultura. E se hoje há evidências diretas, então teria sido uma feliz coincidência a vitória dos atomistas? 
Apresentar a física como um arbitrário cultural a qualquer um, quanto mais um estudante, não poderia ser feito sem ferir desde a base o seu potencial para a produção de ciência. Se a física é um arbitrário cultural, qual o sentido de seguir uma carreira que consiste em dar suporte à arbitrariedade ou criar novas?
 
A aplicação de tal conceito ao ensino pode ser profundamente prejudicial. No entanto, não queremos com isso desqualificar ou desmerecer o trabalho. Tais esforços contribuem para a percepção dos professores e alunos quanto à existência de elementos arbitrários na teoria, trazendo à tona problemas mal resolvidos, que, por sua vez, ao serem trazidos à tona, podem engendrar aperfeiçoamentos ou favorecer mudanças de paradigmas.  Se por um lado reconhecemos este mérito, por outro, rejeitamos terminantemente a tese de que a Física é um arbitrário cultural tal como entendido por Pierre Bourdieu.

Se no passado a Física era tomada como modelo para as ciências humanas, não deixa de ser curioso que cientistas das humanidades estejam preocupados em modelar ou caracterizar as ciências naturais com conceitos engendrados nas ciências humanas, em contextos bem diversos. Haveria uma arbitrariedade cultural neste esforço?
link: https://seer.ufmg.br/index.php/rbpec/article/view/2512

Nota posterior (fev/2019): Por teoria atômica entende-se aqui sua versão moderna, de acordo com a qual a matéria é composta por pequenas partes potencialmente isoláveis do todo macroscópico, de carga elétrica neutra, composta por um núcleo positivo pesado e uma distribuição de partículas leves, chamadas de elétrons - de carga negativa. Não se deve confundir com o atomismo grego, de acordo com a qual tais partes são efetivamente indestrutíveis, inseparáveis e precisamente localizadas no espaço. Até hoje, não há consenso sobre a existência de partículas totalmente inseparáveis, e a teoria atual sobre as partículas as descrevem como campos.   

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