domingo, 27 de outubro de 2013

Modernismo, pós-modernismo e tradição


A modernidade nasceu com a promessa de transformar a vida das pessoas para melhor. Havia a convicção de que apenas a ciência seria suficiente para guiar um processo de aperfeiçoamento contínuo da qualidade de vida. De fato, o impulso sem precedentes que a ciência deu à tecnologia permitiu à sociedade um maior conforto. Por outro lado, essa mesma ciência foi aplicada como um instrumento eficaz de dominação e exterminação.

O otimismo e a euforia que esses grandes avanços produziram nos homens do século XIX foram massacrados pela irrupção das duas grandes guerras mundiais. A promessa do modernismo fracassou peremptoriamente. Desorientada e desiludida, a classe pensante ligada à tradição modernista foi obrigada a rever suas premissas e reformular as antigas promessas. Assim nasceu o pós-modernismo.

Para restaurar o projeto gerado pela modernidade, era necessário compreender os motivos que conduziram àquele trágico desfecho. Dessa vez, já não era mais possível culpar as instituições tradicionais, pois já tinham perdido influência sobre o agir da classe dirigente. Mesmo a monarquia, tendo sido sem dúvida uma instituição tradicional envolvida nos acontecimentos, sobretudo durante a primeira guerra mundial, já há muito tempo tinha cedido espaço ao projeto modernista, na esperança de sobreviver ao tempo.

Ainda que a classe pensante tenha permanecido majoritariamente ligada à tradição iluminista, há uma percepção lavrada no espírito pós-moderno de que as possibilidades da razão são limitadas. Tendo perdido a esperança nela, poucos parecem ainda acreditar que seu empenho pessoal pela realização da causa irá dar bom fruto. Nesse cenário, e diante das possibilidades de conforto à sua disposição, a sociedade fez a opção pelo ideal de uma vida dedicada principamente à satisfação dos desejos pessoais.

No final das contas, qual era mesmo a promessa da modernidade? A promessa de um mundo, uma sociedade e um homem novo . Um mundo que produziria tudo aquilo de que se necessita, em abundância, de modo que nada falte a ninguém. Uma sociedade perfeita, solidária e fraterna, onde a guerra e os pequenos conflitos de interresses deixariam de existir. Um homem novo, comprometido de corpo e alma com a manutenção desse mundo novo.

Essa esperança permanece radiante no firmamento cultural da pós-modernidade, mas não parece razoável supor que a classe dirigente e pensante realmente acredite na sua realização. Na verdade, é do interesse dessas mesmas classes, sobretudo das dirigentes, utilizar a utopia como instrumento político para a dominação e cooptação da massa de manobra.

De qualquer modo, a esperança pós-modernista está na maior parte dos casos presente nos corações apenas como um desejo difuso, incapaz de cristalizar-se em ações concretas. Na prática, os corações permanecem confinados à espiral do egoísmo, incapazes de colocar em prática os valores que lhes foram inculcados.

A falha monstruosa que conduziu ao fracasso desse projeto não pode ser entendida dentro das categorias da tradição iluminista que o gerou. Na realidade, a razão dos modernistas esconde no rigor da técnica e do método o caos teleológico de suas propostas. Aos ingênuos, elas sugeriam que a aplicação do rigor científico a todas as esferas da vida pública e privada acabaria com todos os males sociais e pessoais. Mas o olhar mais aguçado, cultivado pela educação na tradição, logo percebeu que a verdadeira força motriz da modernidade eram as paixões.

A razão dos modernistas sempre se recusou a aceitar a existência da desordem nas paixões.  Paradoxalmente, tanto no modernismo quanto no pós-modernismo, sua classe pensante preferiu sacrificar a razão caso isso fosse necessário para salvar a legitimidade das paixões, identificada com a liberdade. Isso não é de espantar, pois nessa perspectiva seguir os impulsos das paixões é ser livre. Não que a razão seja pouco valorizada no modernismo; ela é de fato exaltada, mas uma noção limitada de liberdade está no topo da hierarquia de valores.  

É difícil ser tão ingênuo a ponto de acreditar que o indivíduo que dá vazão desenfreada aos seus apetites é a mais angelical e inocente das criaturas da terra. Mas pelo incrível que pareça o mito do bom selvagem persiste no firmamento cultural dos nossos tempos

A verdadeira causa do fracasso do projeto modernista foi ignorar a motivação caótica por trás do uso eficaz da ciência e da técnica. A razão não reformou o coração do homem, mas foi apropriada por ele para amplificar a capacidade de concretização das suas perversidades.

Os pensadores pós-modernos se debruçaram sobre o problema, tendo inevitavelmente afogado os ânimos no definitivo desencanto. Por outro lado, essa dinâmica da natureza humana foi identificada com precisão pela classe dirigente e pelas grandes forças econômicas. Vivemos imersos em um mundo que se transformou em uma imensa e lucrativa fábrica de sonhos e espetáculos para saciar todos os seus apetites, inclusive suas perversidades.

Nesse novo cenário, há ainda espaço para a razão? O uso da razão está atualmente ainda mais restrito à dominação e à satisfação da insaciável concupiscência humana. Isso é verdade em todos os estratos da sociedade.

Os apetites geram uma tensão interior, fornecendo uma energia potencial que só é liberada no momento da sua satisfação. Como fenômeno de massa, essa tensão representa um perigo real para a ordem vigente, sendo, ao mesmo tempo, uma arma poderosa nas mãos de políticos hábeis. Há muitos anos, o ocidente vive em uma paz instável, conquistada por meio de uma perigosa política de estímulo à satisfação imediata dos desejos pessoais.        

É bem verdade que ao aliviar a tensão, os ânimos arrefecem. No entanto, as paixões humanas não tem um limite bem definido, pois é próprio da natureza humana sempre aspirar mais. O estímulo à satisfação dos apetites desordenados é uma medida perigosa, fadada a uma situação insustentável, em que a máquina produtiva já não dará mais conta de satisfazer uma grande massa de insatisfeitos e revoltados.

Não seria honesto deixar de reconhecer que mutilar todas as aspirações do coração também seria perigoso para a sociedade, além de desumano. Bem sabemos que a conquista dos corações para uma causa tem sido o meio mais eficaz para concretizar projetos políticos nefastos. Por isso, uma educação baseada na supressão total das paixões pessoais pode ter uma motivação manipuladora.

O objetivo que uma sociedade mais humana deve almejar é a educação das paixões. Esse aspecto do ser humano tem sido negligenciado pelo modelo moderno de educação. Em geral, a paixão é vista como uma força caótica e destruidora, e pouco é feito de maneira eficaz para canalizá-la à realização de grandes empreendimentos. As forças do mercado, logicamente, sabem canalizá-las. Mas infelizmente são empreendimentos totalmente voltados à produção de bens para retroalimentar a espiral do consumismo. Em outros termos, o trabalho duro é ainda tolerado, contanto que tenha como recompensa  a satisfação plena dos apetites pessoais. Nessa lógica, o trabalho não tem um sentido transcendental.  Além disso, se firma sobre a premissa de que não há nada melhor para aspirar nessa vida do que o prazer material.  

A educação das paixões é um tópico à parte. É essa a resposta fundamental para a superação do desencanto pós-modernista. O grande desvio do modernismo foi ter subestimado ou até ignorado essa força que movia as ações humanas. Pois no campo da vida prática, das decisões, a paixão desempenha um papel muito forte. Ela é capaz de torcer a razão, derrubando facilmente as conclusões puramente racionais do sistema moral adotado. Sendo desumano suprimir a paixão, uma importante componente da natureza humana, fortemente relacionada com a felicidade, é necessário educá-la e harmonizá-la com a razão. Eis o grande desafio.  

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